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quarta-feira, 17 de abril de 2013

Espiritualidade Pascal

Estamos em pleno tempo da Páscoa. A consciência cristã dos nossos dias precisa de recuperar o sentido e de viver do espírito deste tempo litúrgico, que foi o primeiro, depois do domingo, a ser celebrado pela comunidade cristã. O Tempo Pascal é mais antigo do que a própria Quaresma, pois que dele se encontram testemunhos já desde os fins do século II. (...)

A redescoberta da preparação para a Páscoa, que é a Quaresma, foi certamente uma grande graça para a Igreja, a qual foi por sua vez devida à redescoberta da própria Páscoa. Aliás a Páscoa nunca esteve ausente da consciência cristã, pois que o Mistério Pascal constitui o coração de todo o cristianismo, e a celebração da Páscoa o centro de toda a liturgia cristã. Mas o que é estranho é que esta redescoberta da Páscoa não se tenha estendido ainda, ao menos na consciência de muitas comunidades cristãs, a todo o Tempo Pascal. Possivelmente em razão das distorções litúrgicas atrás referidas e que duraram séculos, mas talvez mais ainda pela dificuldade que todos temos em aceitarmos que o cristianismo é antes de tudo um dom. A Quaresma prepara-nos para este dom na luta ascética e na purificação, o que é aliás exigência bem humana. A comunidade cristã nunca o ignorou. Mesmo antes de ter instituído uma Quaresma, já, e desde o princípio, ela conhecia a penitência que é conversão, e sem a qual não se pode entrar no Reino de Deus (cf. Mc 1, 15). Por consciência do próprio pecado, por experiência de uma vida cheia de negativos, pelos limites angustiantes que nos envolvem por todos os lados, facilmente aceitamos, ao menos em princípio, a necessidade de purificação, de libertação, de renovação. Foi talvez ainda nesta linha que os mistérios da paixão, ao menos na sua expressão dramática, encontraram sempre fácil aceitação entre o povo. E é ainda assim que a Semana Santa é ainda para muitos, acima de tudo, a Sexta-feira Santa, mas como que isolada no seu quê de quase trágico. Mas penetrar no mistério do Domingo, o «primeiro dia da semana» (Jo 20, 1), ultrapassar o «drama do Calvário», reconhecer o «jardineiro» da manhã da ressurreição junto do túmulo vazio (Jo 20, 15), não ser «tardo de coração» para compreender o viajante da estrada de Emaús «na tarde daquele dia» (Lc 24, 25), ser enfim capaz de reconhecer o «dom de Deus» (Jo 4, 10) na vida que surge da morte, quedar-se na contemplação que leva à acção de graças em louvor – em eucaristia – perante «o dia que o Senhor fez» e prolongar este estado de alma para além da Vigília Pascal, no meio das ocupações diárias de uma existência todos os dias dolorosa e interrogante, encontrar para a morte a resposta da vida n’Aquele que, pela obediência até à morte, foi exaltado pelo Pai até à sua direita e d’Ele recebeu um nome que está acima de todo o nome, o nome divino de SENHOR – tudo isso, foi capaz de o descobrir já uma Igreja sob a perseguição nos primeiros séculos, que soube inventar uma festa pascal de cinquenta dias; mas tem-nos sido a nós, parece, muito mais difícil de conseguir.

No entanto, o Tempo Pascal quer ser esta acção de graças, vivida na alegria, que se apoia no mistério pascal consumado em Cristo. O Tempo Pascal é o tempo de re-conhecer e agradecer, de olhar para o sepulcro vazio, para a vitória sobre a morte, para a revelação da vida na plenitude divina com que ela se manifesta em Jesus Cristo ressuscitado, para o Espírito que invade a terra inteira para dela fazer a «nova criação» (cf. I Leitura da Vigília Pascal) e nela uma nova humanidade, e, ao mesmo tempo, para esta terra devastada e às vezes desesperada, para esta humanidade que se afadiga em libertar-se de tanta escravidão, para este mundo que sempre atrai e desilude quando não se consegue ultrapassar a si mesmo, e, ao reconhecer tudo isto, cantar, em acção de graças, cheia de amor e de esperança, o Aleluia da Ressurreição.

A liturgia do Tempo Pascal sublinha muito todo este reconhecer e este agradecer. Partindo da Vigília, que é o momento de síntese de toda esta revelação e de toda esta atitude espiritual, a liturgia deste tempo perde-se, sobretudo nas primeiras semanas, como que na contemplação agradecida do Senhor que, na mesma carne que de nós recebeu e que n’Ele foi por nós levada à morte, destruiu a morte e manifestou a vida: são as aparições do Ressuscitado, com aquela inefável condescendência do Senhor que mostra as mãos e os pés perfurados e o lado aberto, para que Tomé «creia» (II Dom.), é a imagem do Bom Pastor que dá a vida pelas ovelhas (IV Dom.), e é a vida da Igreja a nascer da Páscoa, totalmente apoiada nesta fé e nesta esperança, como a seara a nascer do grão de trigo, que morreu debaixo da terra (Actos dos Apóstolos lidos no Tempo Pascal). Nas últimas semanas, o pensamento volta-se mais para a promessa do Espírito: «Aquele que crê em mim, disse Jesus, de seu seio nascerão torrentes de água viva. Ele dizia isto falando do Espírito que haviam de receber aqueles que n’Ele acreditassem» (Jo 7, 37-38). Para os que nascem da água e do Espírito, como é todo o cristão, o tempo da Páscoa é o tempo de recordar e renovar o Espírito de que nasceram.

Entretanto, as leituras dos Actos dos Apóstolos recordam as viagens missionárias de Paulo e a expansão missionária da Igreja. São sempre os rios de água viva a jorrarem do trono do Cordeiro (Ap 22, 1) e a inundarem a terra inteira (cf. Ez 47, 1 ss.). É o tempo de tomarmos consciência de que ser cristão é entrar nesta multidão que vai pelo mundo, como Maria de Magdala, anunciando que vimos o Senhor ressuscitado e que Ele nos disse estas coisas (Jo 20, 18).

FERREIRA, José – Os mistérios de Cristo na liturgia. Fátima: SNL (1998), pp. 11-14. ISBN 972-8286-42-2



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