Páginas

quarta-feira, 29 de maio de 2013

A Bíblia das Testemunhas de Jeová





É habitual ver os testemunhas de Jeová pelas ruas, com uma bíblia debaixo do braço que abrem e citam continuamente para apoiar as suas mensagens. Mas essa Bíblia é a mesma que a da Igreja católica? De onde sai? Responde a estas questões o sacerdote Luis Santamaría, membro da Rede Ibero-americana de Estudo das Seitas (RIES), no portal católico Aleteia

. Reproduzimos de seguida as suas explicações.

1. Os testemunhas de Jeová tem uma versão peculiar da Bíblia: a denominada “Tradução do Novo Mundo das Santas Escrituras”.
Os testemunhas de Jeová, uma seita de origem cristã fundada nos Estados Unidos no século XIX, presume ser o grupo religioso mais apegado à Sagrada Escritura. Na apresentação da sua muito conhecida revista A Atalaia lemos: “esta publicação, editada sem interrupção desde 1879, é politicamente neutral e reconhece a Bíblia como máxima autoridade”. Outra revista sua popular, Despertai!, diz formar “parte de uma obra mundial de educação bíblica que se sustém com donativos”. Sem dúvida, é uma bíblia concreta a que empregam os testemunhas, trata-se da “Tradução do Novo Mundo das Santas Escrituras” (TNM), publicada pela Watchtower Bible and Tract Society of New York, Inc., a sociedade mercantil que está por detrás deste movimento.

Na sua web oficial os testemunhas de Jeová assinalam que a TNM “é uma versão exacta e simples. Imprimiu-se inteira ou em parte em mais de cem idiomas, e distribuíram-se mais de cento e setenta milhões de exemplares”. Em Espanha foi conhecida durante muito tempo pelas suas capas verdes, e agora a versão manual mais divulgada tem-nas negras. Mas encontramos desde edições de bolso até volumosas bíblias em letra grande de vários livros, passando pelo áudio ou inclusive o braille. Podemos dizer que há algo de “camuflagem”, já que somente se consigna nestas bíblias que são editadas pela Watchtower Society, mas não aparecem os testemunhas de Jeová em nenhum lado. Talvez seja um modo de evitar suspeitas e prejuízos por parte do leitor que desconheça a sua autoria.

2. Desde a sua fundação, a seita empregou diversas bíblias, mas no final terminou impondo aos seus adeptos a sua própria edição, muito controversa.
Depois da sua fundação por Charles Taze Russell, os testemunhas de Jeová (conhecidos nos seus inícios como “Estudantes da Bíblia”) começaram a utilizar e distribuir a Versão Autorizada (Authorized Version) da Sagrada Escritura. A partir de 1896 ficaram com os direitos de impressão de algumas traduções bíblicas ao inglês, que imprimiram durante várias décadas. Mais tarde deram-se conta de que as diferentes versões empregadas não satisfaziam as suas aspirações, porque interessava-lhes fundamentar biblicamente as suas afirmações doutrinais alheias ao cristianismo, e disseram que se tratava de traduções defeituosas, contaminadas por visões “sectárias ou mundanas”.

Por isso decidiram escrever a sua própria versão, a TNM, que se iniciou com a apresentação do Novo Testamento em 1950 e a bíblia completa em 1960. Quando tiveram a sua tradução “exclusiva”, deixaram de distribuir as traduções anteriores (como, por exemplo, a versão Reina-Valera, a mais utilizada pelos protestantes falantes de espanhol durante meio milénio). Houve um Comité de Tradução organizado pela seita e cujos integrantes permaneceram anónimos. A edição mais recente é a de 1984 em inglês, correspondente à de 1987 em espanhol.

Não empregam a divisão em dois testamentos, mas sim substituem esta denominação universalmente aceite (testamento vem do grego diatheke e do hebreu berit, termos que significam “aliança”) pela partição “Escrituras Hebreu-Arameias / Escrituras Gregas Cristãs”. Os livros denominados deuterocanónicos não aparecem na TNM, pois consideram-se apócrifos. E o mais curioso é que a versão jeová que manejámos da Bíblia não é uma tradução directa das línguas originais ao espanhol, mas sim é uma tradução da tradução inglesa.

3. Esta versão da Bíblia não pode considerar-se tradução, já que manipula conscientemente muitas das expressões da Sagrada Escritura para adaptá-las às doutrinas jeovás.
Os testemunhas de Jeová presumem de que, diferentemente de outras traduções, a TNM é uma “versão em linguagem moderna”. Na primeira página da edição assegura-se que foi realizada “consultando fielmente os antigos textos hebreu e grego”. É verdade que utilizam pontualmente outras traduções bíblicas, mas só para tomar os versículos que lhes interessam num momento determinado. Há um princípio doutrinal que marca as directrizes na hora de manipular na sua própria versão as passagens que façam falta e os faz procurar “apoios” noutras traduções que, além disso, denigrem como inexactas e falseadas. Este princípio é o estabelecido pela cúpula da seita através da Watchtower Society, e que aparece nas suas publicações, que dizem que se tem de ler, como se tem de ler e para que se tem de ler na TNM.

Tudo o que contradiga o seu aparelho doutrinal é modificado. Em primeiro lugar, quanto à divindade de Cristo. Observamos as manipulações, entre outras passagens bíblicas, em Jo 1,1 (“a Palavra era um deus”), Rm 9,5 (“o Cristo segundo a carne: Deus, que está sobre todos, [seja] bendito para sempre”), Tit 2,15 (“aguardamos a feliz esperança e a gloriosa manifestação do grande Deus e de[l] Salvador nosso, Cristo Jesus”), e 2 Ped 1,1 (“por justiça de nosso Deus e de[l] Salvador Jesus Cristo”), dissociando nestes dois últimos casos Deus de Jesus, e introduzindo palavras nos dois primeiros, pisando assim o texto original grego. Também tudo o referente à identidade do Espírito Santo, que não só aparece em minúsculas, mas sim despersonalizado, como por exemplo em Gn 1,2 (“a força activa de Deus movia-se de um lado para o outro sobre a superfície das águas”).

Algo especialmente grosseiro é a forma de traduzir o verbo grego estin(“é”) nas palavras da Ceia do Senhor: “isto significa o meu corpo… este copo significa o novo pacto em virtude do meu sangue” (Lc 22,19-20). Encontramos falsificações semelhantes em tudo o relativo à escatologia, com os termos alma, inferno, etc. Um truque verdadeiramente curioso é o que aparece na pontuação das palavras de Jesus a um dos malfeitores crucificados com ele, para evitar qualquer ideia de retribuição imediata post mortem. Na TNM lemos assim: “verdadeiramente te digo hoje: estarás comigo no Paraíso” (Lc 23,43). Mudam, além disso, o termo “cruz” por “madeiro de tormento” (assim, por exemplo, em Flp 2,8).

Vê-se que algumas passagens se lhes “colaram” no princípio, como a de Heb 1,6. Se na edição espanhola de 1961 se lia “e que todos os anjos de Deus o adorem”, na actual substitui-se o último verbo por “lhe rendam homenagem”, uma modificação clara do sentido do verbo grego original, proskyneo, que significa “adorar, prostrar-se de joelhos”.

4. De forma contraditória, os testemunhas de Jeová misturam na sua TNM o literalismo bíblico (fundamentalismo) com uma manipulação calculada de muitos dos seus textos. Autores de todas as denominações cristãs rejeitaram esta versão.
O especialista católico Prudencio Damboriena assinalou na TNM “um prejuízo hermenêutico adoptado pelos jeovás de dar um significado invariável e com frequência arbitrário a cada vocábulo… Daí não só o imobilismo exegético, mas sim também a fixação absurda de toda uma série de vocábulos bíblicos”. Fala também do “método defeituoso de tradução”, “desfigurado literalismo”, etc. O protestante espanhol Juan Antonio Monroy denominou a TNM “uma Bíblia truncada”, “um remendo de Bíblia”, “a versão mais infeliz”… E chegou a dizer que os testemunhas de Jeová terão que “dar conta de tamanho sacrilégio”.

Parece-me muito interessante esta reflexão que assina um autor evangélico, Daniel B. Wallace, fundador do Centro para o Estudo dos Manuscritos do Novo Testamento, quando comenta as diversas edições da bíblia em inglês: “devido à polarização sectária do grupo, assim como da carência de uma erudição bíblica genuína, eu creio que a TNM é a pior tradução em inglês. Tenta ser palavra por palavra, e na maioria dos casos é submissamente literal ao ponto de ter um inglês terrível. Mas, ironicamente, cada vez que uma ‘vaca sagrada’ é aniquilada pelos mesmos escritores bíblicos, os testemunhas de Jeová mudam o texto e recorrem a um tipo de tradução interpretativo”.

No documento “A interpretação da Bíblia na Igreja”, publicado pela Pontifícia Comissão Bíblica em 1993, explica-se em que consiste a leitura fundamentalista ou literal da Sagrada Escritura: “uma interpretação primária, literalista, quer dizer, que exclui todo o esforço de compreensão da Bíblia que tenha em conta o seu crescimento histórico e o seu desenvolvimento. Opõe-se, pois, ao emprego do método histórico-crítico, assim como de todo outro método científico para a interpretação da Escritura”. Isto é o que se passa na TNM, tanto no seu texto como na sua leitura por parte dos adeptos da seita. Daqui provêm consequências tão controversas como a sua rejeição das transfusões de sangue, por pôr um exemplo bem conhecido.

Continuando com o que diz o documento católico, a leitura fundamentalista “enraíza-se numa ideologia que não é bíblica, apesar de quanto digam os seus representantes. Ela exige uma adesão incondicionada a atitudes doutrinais rígidas e impõe, como fonte única de ensinamento sobre a vida cristã e a salvação, uma leitura da Bíblia que re-usa todo o questionamento e toda a investigação crítica”. Além disso, esta postura “tem frequentemente a tendência a ignorar ou negar os problemas que o texto bíblico apresenta na formulação hebraica, aramaico ou grega”.

5. As pessoas que empreguem a bíblia jeová, em definitivo, não têm entre as suas mãos uma tradução mais ou menos discutível do texto sagrado, mas sim uma falsificação.
Os testemunhas de Jeová publicaram versões interlineares da sua bíblia, onde pode observar-se com clareza onde estão as tergiversações do texto inspirado. Nestas edições aparecem os textos originais em hebreu e grego, com a tradução literal abaixo, palavra por palavra. E ao lado, o texto composto pela seita, que contradiz em numerosas ocasiões o que dizem as línguas antigas. Não podemos falar de uma tradução nem de uma Bíblia, nem sequer de uma interpretação, mas sim de uma clara falsificação.

Retomando o documento da Pontifícia Comissão Bíblica de 1993, cabe assinalar, aplicando-o aos testemunhas de Jeová, à sua TNM e sobretudo à sua forma de ler e interpretar a Escritura, que “a aproximação fundamentalista é perigosa, porque seduz as pessoas que procuram respostas bíblicas aos seus problemas vitais. Pode enganá-las, oferecendo-lhes interpretações piedosas mas ilusórias, em lugar de dizer-lhes que a Bíblia não contêm necessariamente uma resposta imediata a cada um dos seus problemas. O fundamentalismo convida tacitamente a uma forma de suicídio do pensamento”.

Para ampliar a informação:
- São cristãos os testemunhas de Jeová?
- Libro Os testemunhas de Jeová. Um guia para católicos (Vita Brevis, 2013).





Sem comentários:

Enviar um comentário