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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Pier Paolo Pasolini: comunista, homossexual, ateu… E firme contra a legalização do aborto

«Considero-o como uma legalização do homicídio» 

Pier Paolo Pasolini, filmando a sua última obra... A sua sensibilidade
e espírito livre faziam-no condenar o aborto como um homicídio mais
Actualizado 23 de Janeiro de 2014

P.J.Ginés/ReL

O poeta e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini estava muito longe de qualquer posição conservadora ou clerical mas entre 1973 e 1975, nos seus artigos de Il Corriere della Sera, na sua coluna "Escritos corsários" manifestou-se com contundência contra a legalização do aborto.

Ele era firmemente ateu, declaradamente homossexual e militantemente comunista, mas nenhum destes colectivos hoje se sentiria a gosto com as suas posturas. Era homossexual e promíscuo mas evitava o submundo gay; era comunista mas heterodoxo e expulsaram-no do partido; era ateu, mas como poeta e artista não podia não ver o sagrado na vida e na existência, e a sua "Paixão segundo São Mateus" obteve prémios cinematográficos católicos (pela sua sensibilidade, não pela sua teologia).

Pasolini enfrentou-se no seu ambiente da esquerda radical quando este colocou a legalização do aborto em Itália.

"Estou traumatizado com a legalização do aborto porque, como muitos, considero-a como uma legalização do homicídio", escreveu em Il Corriere della Sera.

Mais além dos partidos
Confrontado com os slogans simplistas da esquerda e a sua visão do mundo em dois grupos, Pasolini escreveu: "o contexto no qual há que considerar o problema do aborto é muito mais amplo e vai muito mais além da ideologia de partidos".

Por um lado, o artista apelava a argumentos de ecologia humana: "a tragédia demográfica é a que, num horizonte ecológico, se apresenta como a mais grave ameaça para a sobrevivência da humanidade. [...] Antes, todo o filho que nascia era bendito por ser garantia de vida; pelo contrário, todo o filho que nasce hoje é uma contribuição à autodestruição da humanidade e portanto é maldito ", escreveu. Assim denunciava a visão anti-vida dos acomodados da sua época.

E acrescenta: "os extremistas à defesa do aborto [...] falam do aborto como referindo-se a uma tragédia feminina, na qual a mulher está só com o seu terrível problema, como se nesse momento o mundo a tivesse abandonado. Compreendo. Mas poderia acrescentar-se que quando a mulher estava na cama não estava só". 

O carácter sagrado da vida
Como poeta e artista, ele via que o aborto quebrava algo especialmente valioso e sagrado. Usava a palavra "hierofania" que tinha lido nos textos de Mircea Elíade: "manifestação do sagrado".

"Devido ao meu sentimento profundo de hierofania, do carácter sagrado de todas as coisas (uma certa visão gnóstica que tenho do mundo) repugna-me ver destruída a ordem principal da vida", denunciava Passolini.

E concluía num dos seus artigos: "pode-se tranquilamente passar por cima de um caso de consciência pessoal com relação à decisão de fazer vir ou não ao mundo alguém que quer decididamente vir?

Com as crianças não queridas
Como tantos outros rapazes sensíveis e feridos que chegariam a desenvolver sentimentos homossexuais, Pasolini tinha vivido uma infância apegado à sua mãe e assustado ou rejeitado pelo seu pai. A sensação de "menino não querido" era forte nele, e doía-lhe que se gerasse uma sociedade que não queria as crianças, que as matava.

Inclusive na sua obra final, "Salo ou os 120 dias de Sodoma", um transgressor e agressivo estudo do sadismo nos dias finais do fascismo italiano, aparecem as figuras de crianças utilizadas e desprezadas. Mas todo esse mal no mundo não era desculpa, segundo ele, para justificar o aborto.

"Pasolini argumentava contra a liberalização da lei do aborto porque sacrificar a procriação ao prazer era uma forma de americanizar o sexo, convertê-lo numa diversão", escrevia em 1982 Edmund White no New York Times.

Aborto: o mais brutal e doentio

Sobre o tema escrevia também Sam Rohdie na sua biografia "The Passion of Pier Paolo Pasolini": "O aborto, creio, simbolizava para Pasolini tudo o que havia de brutal e doentio no capitalismo moderno. [...] Para Pasolini a legalização do aborto constituía a inversão dos valores da sociedade anterior, a de antes do consumismo, quando os nascimentos eram uma alegria e uma ´festa´ [em italiano], quando a natureza era assombrosa e sagrada, não como agora, disse, funcional e calculada. O aborto tinha uma racionalidade louca. A sociedade assassinava os seus não nascidos para manter-se. O que matava era, em todos os sentidos, o real, a realidade. O que ocorria nas clínicas estava ocorrendo na sociedade em geral. O real era destruído em nome das razões do consumismo, não por humanidade".

Pasolini, tão radical como contraditório, morreu no contexto do sexo comercializado que ele sabia que era tão desumanizador: matou-o em 1975 um prostituto de 17 anos o qual recolheu na estação central de Roma e levou à praia a Ostia, o porto romano. O artista tinha 53 anos. As circunstâncias exactas ainda são motivo de conjecturas.



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