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terça-feira, 25 de março de 2014

O Patriarca de Moscovo, normalmente aliado de Putin, irritado e magoado com a anexação da Crimeia

Actualizado 21 de Março de 2014

Vladimir Rozanskiy / AsiaNews 

Kirill ganhou prestígio na Rússia
ocupando a pequena Crimeia, mas
o Patriarca pode perder 13.000
paróquias ucranianas e a sua
primazia mundial na ortodoxia
Quando no passado dia 17 de Março o presidente russo Vladimir Putin dirigiu ao Parlamento federal o seu apaixonado discurso sobre a defesa da Grande Rússia, para justificar a anexação da Crimeia, os olhares dos presentes das primeiras filas traíram uma insólita preocupação.

O silêncio de Kirill retumba
Aos pés do presidente, entre os turbantes do Imã e o cilindro do rabino, notava-se a falta da tiara branca do patriarca Kirill.

Só duas filas atrás estava o incerto chapéu velado do seu vigário, o ancião metropolita Juvenaliy, enviado para representar a Igreja patriarcal, cuja bênção era indispensável para confirmar a necessária reapropriação da "terra santa" da Crimeia.

A ausência de Kirill foi justificada pelo seu porta-voz com incertas referências ao seu estado de saúde (mas resulta que no dia anterior tinha presidido a uma longa celebração) e ao devoto silêncio quaresmal (que também deveria valer para Juvenaliy).

Na realidade a falta de bênção de Kiril demonstra o desgosto extremo do Patriarcado de Moscovo frente à crise ucraniana, que pode sacudir também as estantes das mesmas instituições eclesiásticas, e deitar pelos ares as perspectivas de desenvolvimento que com tenacidade Kirill construiu nos últimos anos.

Parece que Putin, desta vez, foi demasiado longe também para os seus pais espirituais.

Grande Rússia? Sim, mas não assim
Kirill não é que não seja patriota. É mais ele é um dos principais custódios e propagandistas.

Já desde tempos de Gorbachov e Yeltsin, o então metropolita Kirill Gundyaev mostrou-se como o principal inspirador de uma nova ideologia estatal pós-soviética, baseada na restauração ideal da Santa Rússia, vista como Estado-Igreja, capaz de defender na pátria e no estrangeiro os valores cristãos num mundo secularizado.

Kirill expressa a reencarnação do modelo chamado "josifiliano", do nome do monge Josif de Volokolamk que em 1500, criou a ideia da Igreja "constitutiva do Estado", uma das expressões favoritas do actual patriarca, ideal realizado logo pelo czar Ivã o Terrível... Que é a verdadeira figura de referência do seu actual sucessor Putin.

Sem dúvida hoje, enquanto 95% dos russos da Crimeia aprova com entusiasmo o retorno à mãe Rússia e a maioria dos russos se orgulha pela demonstração de força que o país opõe às miras do Ocidente, o Patriarca retira-se e fecha-se num ascético silêncio.

30 visitas à Ucrânia... Para quê?
O facto é que Kirill tinha apostado muitíssimas das suas cartas por toda a Ucrânia, não certamente sobre a pequena Crimeia ou sobre qualquer das províncias orientais!

Nestes 5 anos depois da sua eleição, o Patriarca visitou a Ucrânia pelo menos 30 vezes, indo por todos os lados, até às dioceses mais ocidentais e anti-russas, nas quais o seu predecessor Alexis tinha temor de apresentar-se.



O chefe da secção ucraniana do patriarcado, o metropolita de Kiev, Vladimir Sabodan, foi por ele introduzido no Sínodo dos bispos de Moscovo, verdadeiro órgão directivo da Igreja ortodoxa russa, com um título de honra quase igual aos seus e com ele tinha cooptado outros membros da jurisdição ucraniana, vista como uma Igreja quase autónoma, mas bem integrada na estrutura do Patriarcado moscovita.

Interrogações que doem a Kirill
E agora que sucederá? Criar-se-á na Ucrânia uma [outra, já há duas] Igreja [ortodoxa] independente de Moscovo?

Que fazer com a mesma diocese da Crimeia, que agora se converteu em russa a nível civil?

Passará directamente para debaixo do Patriarcado de Moscovo? E se Kiev não estiver de acordo? Esta perspectiva aterroriza Kiril mais de quanto se possa imaginar.

A Ucrânia a nível eclesiástico expressa quase metade das paróquias de todo o Patriarcado de Moscovo (13.000 paróquias ucranianas frente às 15.000 russas).

Cerca de 60% do clero do Patriarcado de Moscovo é da Ucrânia, incluindo numerosos bispos que trabalham na própria Rússia.

Kirill e Putin ao celebrar o milenário do Baptismo
da Rússia, obra do czar San Vladimir... Que na
realidade foi na Ucrânia
Outro cisma por nacionalismo?
Na Ucrânia surgiram diversas tentativas de independência autonomista, que quiseram a completa auto-liderança e a independência do Patriarcado de Moscovo.

Por outro lado a sede de Kiev é historicamente a originária, da qual Moscovo se separou só em 1589.

Actualmente o metropolita de Kiev, Vladimir Sabodan, de quase 80 anos, está em grave estado de saúde, e certamente Kirill pede nas suas orações que o Senhor o conserve o máximo de tempo possível: nestes tempos a eleição de um novo metropolita estaria seguramente acompanhada por fortes pedidos de autonomia.

O vigário de Vladimir, o metropolita Onofre Berezovskiy, das suas originárias posições pró-Rússia, afastou-se para sempre, até a defesa da integridade do estado ucraniano e da sua Igreja independente. Os outros bispos são ainda mais explícitos neste sentido.

A Igreja de obediência moscovita arrisca aparecer aos olhos dos ucranianos como a "Igreja invasora", o que faria e daria ar novo ao retomar a autoridade da outra igreja ortodoxa que há na Ucrânia, a Igreja Ucraniana Independente do Patriarca Filaret Denisenko, hoje muito debilitada, mas ainda numerosa.

Sem contar a Igreja Grego-católica do arcebispo maior Svyatoslav Sevchuk, que tem o seu bastião na Ucrânia ocidental e que apoiou os protestos do Maidan e a revolução de facto em Kiev.

E prejudica Kirill a nível mundial
Kirill teme também perder a sua posição dominante na inteira comunhão ortodoxa, que em 2016 se reunirá no Fanar [a sede do Patriarcado de Constantinopla] para o grande Concílio Panortodoxo, o primeiro de toda a história milenar da Ortodoxia.

Actualmente Moscovo representa 70% de todos os ortodoxos do mundo; se a sua jurisdição fosse dividida em metade, arriscar-se-ia a terminar sendo outra minoria.

Veria perder o grande êxito que significava convocar o Concílio Panortodoxo de Constantinopla.

Isto, de facto, poderia ser a tumba de todas as ambições da Ortodoxia russa de guiar o mundo cristão em contraposição (ou ao menos a par) com o Papa de Roma.

A grande Rússia, anexando-se a pequena Crimeia, em vez de ampliar-se poderia terminar sendo, na realidade, mais pequena.


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