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sábado, 19 de abril de 2014

Régis Debray, ícone da esquerda, crê agora que o diálogo de civilizações é um mito «progre»

Pede um «choque de ideias» que assuma «a própria identidade» 

Régis Debray, depois de amos de análises do diálogo entre
culturas e religiões, vê que costuma limitar-se a um
jogo de elites ilustradas
Actualizado 9 de Abril de 2014

Giovanni Maddalena / Tempi.it


Régis Debray representa a quinta-essência do intelectual francês.

Ècole Normale Superieure, intelectual comprometido em Cuba, combatente com o Che Guevara na Bolívia onde permaneceu em prisão três anos (estava condenado a trinta mas foi libertado pela pressão internacional), assessor especial de Mitterrand, estudioso dos meios de comunicação, chefe de comissões internacionais para o estudo da laicidade e das religiões, Debray foi tudo o que um intelectual de esquerda pode ser e, talvez por isso, as suas páginas têm o sabor da experiência real.
Régis Debray, com bigode, preso na Bolívia
em 1967
Resulta surpreendente, então, o seu livro Il dialogo delle civiltà. Un mito contemporáneo (O diálogo das civilizações. Um mito contemporâneo, ndt), publicado em italiano pela editoria Marietti.

Trata-se de uma conferência que é o resultado de anos de trabalho de uma comissão internacional que tentou desenvolver um diálogo real entre culturas distintas: islâmicas, cristãs, judaicas, ocidentalmente laicas e agnósticas.

O resultado, que Debray explica muito bem, é que o diálogo cultural é muito frequentemente um mito das elites liberais da Europa e da América do Norte, uma espécie de folha de videira para ocultar a má consciência de uma gestão do poder que não é muito diferente de todos os seus precedentes históricos.

Refugiar-se no identitário
O diálogo das civilizações é o mito de uma cultura falsa e que homologa, afligida pelo que ele chama o efeito jogging. Quando inventaram os carros tinha-se que o homem teria perdido a capacidade de mudar e, por outro lado, agora todos correm de maneira stressada; assim, na era da globalização da técnica, todos tendem a refugiar-se nas suas próprias culturas de origem.

Debray julga este paradoxo como uma forma de resistência humana contra o predomínio da técnica. No fundo, o verdadeiro erro foi fazer coincidir a cultura com um saber positivista que, sucessivamente, se transformou em técnica e que nos deixou uma alternativa trágica: ou deixar-se homologar por uma globalização técnica onde se perdem as perguntas essenciais da vida ou resistir lutando contra todo o sistema globalizador.

Para Debray uma solução alternativa consiste em começar de novo desde uma concepção diferente de diálogo e de cultura. É necessário aceitar, sem falsidades e no respeito das experiências, que o diálogo, para ser real, deve ser um “choque de ideias”: para dialogar de verdade é necessário por sobre a mesa as diferenças e as identidades. E o dito choque de ideias será verdadeiramente cultural só se cada pessoa assume de maneira consciente e profunda a sua própria identidade.

A hipocrisia intelectual
Poder-se-ia discutir tanto sobre a análise como sobre a solução. A análise ressente-se do clássico sistema da hermenêutica do século XX que, afinal, opõe técnica a saber autêntico. Ainda que partilhando a observação sobre o paradoxo efeito jogging, penso que os problemas da técnica e da homologação dependem da ideologização.

A técnica converteu-se num ídolo próprio pela falta de assunção de identidade e quer homologar quando encontra, não um sujeito consciente, mas sim um individuo só e perdido (como dizia Arendt do homem que passou a ser presa do nazismo). Parte do efeito jogging é causado pela necessidade de encontrar um grupo de pertença porque o homem é, fundamentalmente, um animal relacional.

Quando a técnica é utilizada por pessoas conscientes e não isoladas pode favorecer e não esconder as identidades.

Além disso, para que um diálogo, no qual se aceitam as diferenças, seja verdadeiro, as palavras não bastam. Necessitam-se gestos completos e profundamente culturais como comer juntos, escutar música, jogar, ocupar-se do outro, etc.

Talvez um diálogo participado, feito de acções mais que de palavras, poderia evitar que o choque de ideias seja simplesmente um exercício dialéctico.

Apesar de tudo, Debray, na sua linguagem simples e eficaz, rompe o véu da hipocrisia dos intelectuais e leva a questão da pertença e da identidade ao centro da concepção do diálogo. Não é pouco e é, a seu modo, revolucionário.

(Tradução de Helena Faccia Serrano, Alcalá de Henares)


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