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sábado, 26 de julho de 2014

"O Papa critica o utilitarismo, não o capitalismo"

Cardeal Turkson fala sobre doações governamentais, a reforma da Cúria, a possível viagem do Papa à África e a opinião do Papa sobre a economia


Roma, 25 de Julho de 2014 (Zenit.org) Deborah Castellano Lubov


O cardeal ganês Peter Turkson disse que a visita do Papa a África não é totalmente absurda. Em uma longa entrevista concedida a Zenit, o presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz discute se o departamento será reformado e se o Papa vai visitar a África, e esclarece as críticas do Papa contra o "sistema". O cardeal também explica o papel do seu Conselho no incentivo a empreendimentos comerciais nos países em desenvolvimento e expressa sua opinião sobre o apoio financeiro dos governos na cooperação para o desenvolvimento.

Antes de ser entrevistado por ZENIT, o cardeal apresentou um seminário no Vaticano sobre Um bem comum global: rumo a uma economia mais inclusiva, organizado pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz, em colaboração com a Secretaria de Estado, realizado nos dias 11 e 12 de Julho.

Zenit: Quando o Papa critica o "sistema" está se referindo ao capitalismo? Ou quer dizer um sistema desprovido de valores e ética cristãos?
Cardeal Turkson: O Papa realmente não quer criticar o capitalismo; prova disso é a sua Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. Na mesma exortação ele deixa claro [que não está escrevendo] uma doutrina social como a Caritas in Veritate, Centesimus Annus, ou a Populorum Progressio. O Papa deixa claro que este não é seu objectivo.

Acabamos de ter um Sínodo sobre a Nova Evangelização, e depois de cada sínodo, o papa normalmente escreve uma exortação. Por exemplo, o sínodo da evangelização traz a alegria de Cristo às pessoas. O Papa explica que esta alegria não é encontrada em qualquer lugar e que existem problemas e obstáculos na experiência desta alegria. O Papa identifica alguns dos obstáculos à pregação do Evangelho e expõe a alegria como uma condição necessária para os crentes em sua experiência religiosa.

Então, não é e não pode ser um ataque ao capitalismo, porque essa palavra não aparece nenhuma vez neste documento. Embora os economistas digam que o mercado é o agente do capitalismo, o Papa, no entanto, fala estritamente do mercado. O Papa não fala de um mercado que deve acrescentar os valores cristãos em sua ideologia; mas refere-se ao sentido antropológico, ou seja, que o ser humano foi criado para ser o centro da Criação. Quando algo substitui ou nos leva para longe do centro, então, significa que nós nos tornamos escravos do outro. E se, neste caso, é o mercado ou as finanças, então algo está errado. Esta é a questão fundamental do Papa.

A declaração mais forte do Papa é que os mercados devem estar a serviço do ser humano e não vice-versa. Para o Papa, o ser humano não pode ser reduzido a um estado de servidão e não deve ser obrigado a sustentar servilmente as forças de mercado, o que pode levá-lo a centrar-se exclusivamente na produção de mais dinheiro.

Quando isso acontece, o Papa diz que algo não está no caminho certo. O sentido fundamental da antropologia na Criação é que a humanidade está no centro. É a glória de tudo o que Deus criou. Se esta glória for substituída por outra coisa, significa que esta está fadada ao outro. Muitos pobres, abandonados, excluídos são substituídos do centro de Deus pelas forças do mercado. O Papa defende aqueles que se tornam vítimas de um sistema económico (qualquer quer que seja), que perdem o seu papel central.

Várias pessoas concordam com esta tese. Por exemplo, muitos de vocês recordam que no ano passado Obama citou a Evangelii Gaudium em seu discurso no Congresso. Em 2009, no discurso de posse, o presidente Obama fez comentários semelhantes a estes, ou seja,  a necessidade de um mercado que serve o povo, e suas últimas palavras para o Congresso foram que se os Estados Unidos, com todos os seus recursos, fosse incapaz de ajudar os pobres a sair dessa situação, isso significaria que o Estado estaria falhando com muitas pessoas. Portanto, trata-se de um conceito que não é compartilhado apenas pelo Papa, apesar do Papa ter sido capaz de expressá-lo de tal forma que todos agora estão começando a pensar sobre isso.

Em nosso seminário sobre "bem comum global" e  uma sociedade mais inclusiva, discutimos a forma de evitar uma visão redutiva da pessoa humana, ou seja, quando a pessoa humana é reduzida no carácter, no estado, e na natureza, e de outras formas, a qualquer coisa.

Zenit: Qual é o papel do Conselho na promoção de iniciativas empresariais nos países em desenvolvimento?
Cardeal Turkson: É um trabalho difícil. Este é o segundo seminário sobre economia que fizemos este ano. O primeiro aconteceu em meados de Junho junto com o CRS (Catholic Relief Services) nos Estados Unidos e com a Mendoza Business School na Universidade de Notre Dame, e foi sobre o impacto do investimento.

O impacto do investimento é uma forma mais ampla dos serviços financeiros que foi introduzida para mais e mais pessoas. No contexto da Igreja esta prática ocorre quando o capital de congregações religiosas ou fundos de pensão é utilizado para algo social que produza um bom resultado para a humanidade concretamente e, ao mesmo tempo, um retorno económico justo. Portanto, não é dinheiro perdido ou subsidiado. Pelo contrário, é o dinheiro utilizado como capital de forma equilibrada para alcançar ambos os benefícios económicos e sociais, de modo a suprir as necessidades da nossa população, mas com a possibilidade de um lucro com o qual serão realizados novos investimentos.

Após o seminário, a nossa intenção é fornecer ideias para as comunidades eclesiais locais. Nossa sugestão é que com tudo que está acontecendo no mundo hoje, as formas mais tradicionais que as Igrejas locais se esforçam para financiar seus projectos fiquem cada vez mais no passado. Neste sentido, quero dizer que o pedido de ajuda financeira a governos ou a outras partes da Igreja está diminuindo rapidamente. Vários bispos realizam viagens e fazem apelos de missão nos Estados Unidos ou para algumas paróquias da Europa, e, após receberem, eles querem começar a trabalhar da melhor maneira. Muitas vezes, porém, com esse dinheiro não se torna capital de risco (venture capital). Isso significa que temos que mudar a forma de apoiar e manter viva as nossas Igrejas locais. Precisamos pensar em como reconsiderar o capital disponível para investir e gastar parte da renda gerada a partir dele para apoiar as igrejas locais, em direcção a certa auto-suficiência. Se este for o caso, o que as igrejas vão precisar é um acesso fácil e conveniente ao capital.

Queremos convidar os presidentes de empresas e administradores financeiros, e descobrir como podemos contribuir para tornar essa ideia uma realidade. Eu conversei com alguns dos delegados do Banco Mundial para delinear as ideias que podem ajudar, mesmo que através das igrejas locais, já estejamos explorando todas as possibilidades.

Zenit: O Papa Francisco planea visitar a África?
Cardeal Turkson: Como qualquer Papa gostaria de visitar cada parte da Igreja. Mas até agora não há nenhum anúncio sobre a África. O Papa tem agendada uma visita à Coreia do Sul e Filipinas. Quem sabe o próximo país será a África. Só porque não foi mencionado, não significa que não vai acontecer.

Zenit: Agora, sobre a reforma da Cúria Romana. O seu Dicastério mudará?
Cardeal Turkson: A história mostra que o nosso Dicastério passou por alguns processos de mudança. Imediatamente após o Concílio Vaticano II foi instituído uma comissão simples, e também uma comissão de leigos, de modo que, o presidente dos leigos poderia cuidar do nosso escritório. Foi assim no pontificado de Paulo VI. Com João Paulo II a comissão evoluiu e tornou-se um conselho. E a partir de então, o conselho permaneceu por conta própria, com o seu próprio presidente e os requisitos típicos de um conselho.

Ao longo da história houve momentos em que o presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz cuidava dos migrantes. O Cardeal Etchegaray foi presidente do Pontifício Conselho Justiça e Paz e também do Cor Unum. O Cardeal Martino, meu antecessor, em um determinado momento era o presidente de ambos, dos migrantes e da justiça e paz. Actualmente, cada sector tem seu próprio presidente.

Tudo isso tem a ver com o documento que rege as operações dos escritórios, conselhos e congregações da Cúria Romana. No caso de João Paulo II, agora São João Paulo II, foi o Pastor Bonus. O Pastor Bonus é o documento que se tornou a constituição apostólica que tem dirigido a existência desses escritórios. Se o papa Francis quiser rever o documento e reconfigurar a Cúria ou encontrar uma nova maneira de realizar, ele tem a liberdade de fazê-lo.

Se tal Constituição Apostólica for alterada de alguma forma, então, a estrutura de certos escritórios ou conselhos da Cúria podem ser mudados. Depende de como o papa Francisco, ou qualquer futuro Papa queira configurar a forma com que governa a Igreja.

Zenit: Qual é o seu ponto de vista sobre as doações governamentais nos países em desenvolvimento? Funcionam ou deveriam sofrer alguma mudança?
Cardeal Turkson:  A ajuda do governo pode ser visto de duas maneiras. Em primeiro lugar, a ajuda do governo poderia ser ajuda entre governos ou poderia ser uma ajuda de outro lugar para os governos. Para algumas organizações internacionais, os governos locais e nacionais são seus parceiros naturais.

Se estivermos falando sobre o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional, ou outros, todos têm a ver com os governos. Raramente vemos a interacção com uma instituição que não seja governamental. Esta é uma de várias situações que acontecem, e quando este for o caso, podemos "fazer esse tipo de coisa com uma mão?" "Depende" parece ser a resposta. A ajuda não vem apenas do Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional, mas também do governo britânico, através do DFID, do Congresso dos Estados Unidos através da USAID, e o Canadá também tem seus próprios programas de ajuda. Portanto, há muitas agências e diferentes tipos de ajuda externa, que pode ajudar em várias partes do mundo. Sendo ganês, eu sei que em certo ponto o Ministro da Educação de Gana pediu a entidades estrangeiras para financiar o orçamento e o processo educativo no país, o que eu acho triste. 'Triste' se, como um governo, você precisa de alguém para ser capaz de entender como se forma e como se educar a sua população.

O sucesso destes programas de ajuda depende das condições que acompanham esses programas ou das subvenções provenientes destas agências. Às vezes, os doadores, ou aqueles que fazem a concessão, parecem mostrar suas garras. Por exemplo, se eu não estou satisfeito com as políticas locais ou nacionais, mostram as garras e querem  tomar uma posição - como parte das condições de financiamento do programa.

Como agora, Uganda, por causa de sua posição sobre a legislação ‘anti-gay’. O apoio financeiro de países estrangeiros pode ser reduzido ou retirado, embora sejam fundos para programas de saúde. Então, quando esses programas não são acompanhados de neutralidade, mas estão vinculados às condições, perdem o objectivo de servir para o bem comum. Com relação à pergunta, "o apoio ajuda os governos locais? O apoio pode ser útil, no sentido de possibilitar a liberdade de agir de alguns governos locais. Pode ser útil se os programas assegurarem a transparência, regras anti corrupção e os fundos não forem dispersos para outras áreas. Pode ser útil se a contribuição económica, conhecida como "ajuda", não for dissipada no movimento de uma conta bancária para o país beneficiário.


(Trad.:MEM)


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