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quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Cuba-EUA: diplomacia triangular

Poucas semanas depois da retomada de relações, podemos enxergar melhor os factos


Madrid, 28 de Janeiro de 2015 (Zenit.org) Rafael Navarro-Valls


O comunicado simultâneo em que Washington e Havana restabeleceram relações diplomáticas demonstra três coisas. A primeira é que Obama está menos inerte do que parecia. A segunda é que a diplomacia vaticana retoma a sua força. E a terceira é que, com este surpreendente “degelo invernal”, os Castro acabaram se dando bem.

Escrevi “surpreendente”, mas, na realidade e visto em perspectiva, o desenlace era previsível. Em 27 de Outubro de 1962, como resultado da combinação entre pressão e diplomacia secreta, Kennedy aceitou a oferta de Kruschev: a URSS retiraria seus mísseis de Cuba se os Estados Unidos prometessem nunca invadir a ilha caribenha. Foi aí que começou uma situação estranha, parecida com a “drôle de guerre” da Segunda Guerra Mundial, quando os exércitos francês e alemão, já declaradas as hostilidades, ficaram se observando de trincheira a trincheira durante meses, mas sem iniciar as operações bélicas. Entre Cuba e os Estados Unidos, só que neste caso com a duração de décadas, também houve um estado de alerta sem hostilidades guerreiras: Washington manteve o seu bloqueio e Havana vociferou asperamente. Mas o tempo começou a cansar cubanos e americanos. Não todos os cubanos, já que os exilados em Miami persistem legitimamente na sua posição hostil ao regime que lhes tirou propriedades e liberdades. Nem todos os americanos, já que uma boa parte dos republicanos viu o restabelecimento das relações como “uma concessão estúpida” (John Boehner), como um erro que estende a mão a “um regime repressivo” (Jeb Bush) ou como “concessões em troca de nada” (Marco Rubio).

Uma guerra estranha
Dentro e fora dos Estados Unidos, aberta ou subterraneamente, o fato é se apostava no fim da luta entre dois boxeadores exaustos. É sintomático que, em seu discurso, Obama tenha citado o fim de uma política que foi “um fracasso durante décadas”, ideia que implicitamente foi ratificada por Raúl Castro ao advogar por um novo clima em que “devemos aprender a arte de conviver de forma civilizada com as nossas diferenças”. As reacções internacionais foram, maioritariamente, de alívio. Para o presidente da Colômbia, a decisão é um “passo fundamental” que vai repercutir positivamente em todo o hemisfério. Para a Rússia, “um passo em boa direcção”. Para a Alemanha, “notícias muito boas em uma época cheia de conflitos”.

A situação criada pela aproximação Cuba-EUA se assemelha de algum modo à da declaração de Richard Nixon à nação americana em 15 de Julho de 1971, às 7h30, quando o então presidente anunciou a “normalização das relações entre a China e os EUA”, seguida de uma viagem presidencial a Pequim. Quando os republicanos Nixon e Ford deixaram o poder, aquela “semana que mudou o mundo” terminou com algo menos conhecido, mas exactamente igual ao que aconteceu agora: o anúncio de 15 de Dezembro de 1978 em que o presidente do Comité Central do Partido Comunista da China, Jua Kuo-feng, e o presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, anunciaram simultaneamente o estabelecimento de relações diplomáticas entre as duas nações a partir de 1° de Janeiro de 1979. Também naquela ocasião, sectores americanos reagiram duramente, mas, em geral, a comunidade internacional celebrou o acontecimento.

A diplomacia vaticana
Talvez seja coincidência, mas o dia do desenlace cubano-americano, para cujo sucesso tanto Obama quanto Castro atribuíram importante papel ao papa Francisco, caiu na data do 78º aniversário do pontífice. Segundo a nota vaticana e as afirmações de Castro e Obama, o papa Francisco tinha escrito aos dois para convidá-los a resolver questões humanitárias, além de ter acolhido as delegações de ambos os países e oferecido os seus ofícios em prol do diálogo sobre “temas delicados”.

A nota vaticana ressaltou o desejo de “favorecer o bem-estar dos cidadãos dos dois países”. O objectivo da diplomacia vaticana, hoje, não é tanto resolver um problema entre duas ideologias, mas atender os indivíduos concretos, que, neste caso, são o povo cubano, em sua situação humana, económica e socialmente complexa. O centro das relações entre Igreja e Estado são hoje os cidadãos, não os interesses das cúpulas. Quando Chile e Argentina, por exemplo, aceitaram a arbitragem de João Paulo II no caso do conflito Beagle, não apenas evitou-se uma guerra por questão de horas, mas também salvou-se a vida de quase 30.000 pessoas. Quando os Estados Unidos e a França estavam preparados para uma intervenção na Síria, o papa Francisco enviou uma carta pessoal a todo o G-20 reunido em Moscovo, dizendo que "todos os governos têm o dever moral de fazer todo o possível para garantir a assistência humanitária às pessoas que sofrem devido ao conflito, tanto dentro como fora das fronteiras do país”. Esta audaz intervenção levou Putin a pedir aos Estados Unidos uma inspecção e a destruição dos centros sírios de guerra bacteriológica, evitando um conflito certo.

Os exilados cubanos e muitas pessoas dentro de Cuba não parecem muito de acordo com esta normalização do problema: vários deles opinam que, da parte norte-americana, a posição é oportunista, por quer estar presente quando as mudanças interiores inevitavelmente ocorrerem, e, da parte cubana, é um modo de dar legitimidade e poder a um regime que, por sistema, suprime as liberdades democráticas. É por isso que eu considerei que os Castro são os grandes beneficiados por este degelo de relações. Pode haver, porém, um efeito colateral na intervenção do papa no conflito: o de acelerar mais ainda o reconhecimento da liberdade religiosa pelo regime cubano. É questão de tempo para que as demais liberdades irrompam.

Uma soma de acontecimentos
De algum modo, algo similar aconteceu no Leste europeu. Os princípios morais ajudaram decisivamente a derrubar muralhas cujo cimento parecia feito para durar uma eternidade. Tad Szulc chamou de “último grande espectáculo político do fim do século XX” o encontro de João Paulo II com Fidel Castro em 1998. Ele tinha razão, mas só em parte. João Paulo II, como agora Francisco, teve a virtude de trocar os parâmetros “políticos” de uma situação por parâmetros “humanos” ou éticos. Talvez, também nesta ocasião, a intervenção da diplomacia vaticana contribua para derrubar a última muralha que, no Ocidente, separa um povo inteiro da liberdade.

O que aconteceu foi a soma de fatos que, pouco a pouco, fizeram crescer o prestígio da Igreja católica em Cuba. Tudo começou com a viagem de João Paulo II. A conversa entre ele e Fidel Castro foi importante: desde então, a Igreja foi conseguindo um claro reconhecimento como “corpo social” na ilha caribenha. A hierarquia cubana aceitou a mediação da Igreja em alguns conflitos sociais cubanos recentes. Francisco continuou este processo. Naturalmente, o que aconteceu só era possível para as autoridades cubanas enquanto Fidel estivesse vivo. Depois, a nova era Cuba-EUA teria parecido uma “reforma” da Revolução. Fidel, em vida, aceitou a mudança, que agora se apresenta simplesmente como uma “matização” do processo revolucionário.

Parece que Obama conseguiu deixar um legado para a história e para a sua memória. Seu desafio agora é que o Congresso levante o embargo contra Cuba.

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