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domingo, 25 de janeiro de 2015

Na Síria e Iraque está em marcha «a maior limpeza religiosa da História», de pessoas e templos

Até às «zero» cruzes 

Lugares onde há cristãos desde os primeiros séculos são hoje
um deserto de baptizados, com dezenas de igrejas profanadas.
Actualizado 28 de Dezembro de 2014

Fernando de Haro / La Razón

Vai ser a segunda parte. Vamos contar uma autêntica limpeza étnica. Este mês de Janeiro a equipa que estamos rodando uma série de documentários sobre cristãos perseguidos (com o patrocínio do Instituto CEU de Estudos Históricos e a Fundação Ignacio Hernando de Larramendi) pomos rumo ao Líbano.

Desde ali poderemos ver e relatar um dos êxodos mais trágicos que se produziram no mundo durante os últimos anos. Os seguidores da cruz desde há meses escapam da Síria e do Iraque, muitas vezes apenas com a roupa no corpo, para viver como deslocados no Curdistão, na Jordânia ou no país dos cedros. O Oriente Próximo fica sem cristãos. O cristianismo de todo o mundo perde assim a memória viva do que sucedeu nas suas origens. E os países de maioria islâmica perdem uma minoria decisiva para construir uma sociedade mais plural, mais democrática. Em 2003, antes da intervenção dos Estados Unidos, havia no Iraque 1.600.000 cristãos. Agora já só restam 300.000. Em pouco tempo podem ver-se reduzidos a 50.000. Há cidades onde a cruz estava presente desde os primeiros séculos. Nos últimos meses perderam todos os seus baptizados.

"Primavera" árabe
Há dez anos um bispo grego-católico assegurava que o modelo de convivência entre cristãos e muçulmanos da Síria era modelar. A situação, com alguns altos e baixos, manteve-se estável até Março de 2011 quando estalaram os protestos contra Bashar al Assad. Depois chegou a guerra civil. E a Síria passou de 1.750.000 cristãos a pouco más de 400.000. O êxodo de baptizados iraquianos, que se produziu ao longo de dez anos, no caso da Síria teve lugar em pouco mais de três anos.

A limpeza étnica começa em 2004 e se acelerou com a rápida expansão do autodenominado Estado Islâmico (EI). O EI controla neste momento uma importante zona na Síria (as províncias de Raqqa e Deir al Zor, o que inclui a cidade de Alepo) e outra no Iraque (região de Al Anbar e Nínive). O avanço do EI e a força do jihadismo nestes dois países foram provocados, em grande parte, pelos erros do Ocidente, especialmente dos Estados Unidos. As estratégias de nation-building [construção nacional] no Oriente Próximo desenharam-se em longínquos despachos de Washington sem escutar os cristãos da zona e o islão popular, o verdadeiramente religioso.

Da invasão em 2003 ao abandono em 2011
Não se atendeu os cristãos caldeus e assírios (iraquianos) e invadiu-se o Iraque para destituir Sadam Hussein. Nesse momento começa a tragédia. Os Estados Unidos desmantelam o Exército e a Polícia de Sadam. Em poucos meses aparece no país o jihadismo internacional, até esse momento ausente.

O islamismo ataca os cristãos que já em 2004 se vêem obrigados a suspender um sínodo. Nesse mesmo ano, segundo estimativas feitas por Time, saem do Iraque entre 10.000 e 20.000 baptizados. São membros de uma das comunidades mais antigas. Já no século II a nova fé tinha-se estendido por todo o território e as suas missões chegam até à China. Foram cristãos iraquianos os que transmitiram a filosofia grega ao mundo muçulmano.

Os primeiros movimentos migratórios conduzem aos cristãos de Bagdad e de Mossul (noroeste) até à diáspora exterior mas também até à planície de Nínive (norte) e até ao Curdistão iraquiano. Nem sempre a vida entre os curdos, que tem outra língua e outras tradições, lhes é fácil.

Desde essas datas até ao passado Verão os ataques a igrejas, assassinatos e sequestros sucedem-se sem que respondam a um plano sistemático. Trata-se de semear o terror entre os baptizados de forma indiscriminada. O atentado mais significativo é o que sofre a catedral de Bagdade em 31 de Outubro de 2010. Morrem 45 fiéis que assistem à missa.

É evidente que a debilidade e o sectarismo dos sucessivos governos do xiita Al Maliki (incapaz de integrar a minoria sunita que se sente atraída pelo jihadismo) não garantem a mínima liberdade para os cristãos. A saída das tropas estado-unidenses em 2011 produz-se quando o país está longe de ter conseguido estabilidade.

Aparece o Estado Islâmico
Todo muda para pior em 2014. O EI realiza importantes conquistas e a perseguição torna-se sistemática. Este grupo, que surgiu em 2004 como Al Qaeda dos Dois Rios, depois de várias mutações e depois de enfrentar-se com a direcção da Al Qaeda, consegue criar um Estado dentro do Estado. Consegue-o pela inconsistência do Exército iraquiano. A isso soma-se o financiamento do wahabismo (ramo do islão sunita) da Arábia Saudita e do Qatar, a toma de poços de petróleo dos quais obtém importantes receitas e um projecto ideológico que fala em nome da grandeza perdida do islão.

Em 10 de Junho de 2014 foi um dia negro na história do Iraque. O EI toma Mosul, terceira cidade do país. Em 2003 havia na localidade 60.000 cristãos, estavam ali desde o século VII. Agora não resta nenhum. Foram-se caminhando e aos 5.000 que viviam ainda nas suas ruas o EI torna-lhes impossível a vida. Primeiro deu-lhes um ultimato: ou se convertiam, ou pagavam o tradicional imposto exigido aos que não seguem a Maomé ou saíam. Depois não houve escolha: todos foram expulsos. A história é conhecida: as portas das suas casas foram marcadas com o N árabe de Nazarenos. Sobre a sede do bispado de Mosul ondeia hoje a bandeira do califado, o seu bispo não pode volver a entrar na cidade.

Uma vez tomada Mosul, o EI avança até a planície de Nínive onde até esse momento viviam 100.000 cristãos. A maioria deles fugiu para Erbil (Curdistão) e o Líbano. Nos meses do passado Verão, somando cristãos e muçulmanos, um total de 500.000 pessoas abandonam os seus lares.

Homs, Alepo, Malula...
O Estado Islâmico aproveita-se também da crise na Síria e compete em terror sectário com Al Nusra, a facção jihadista que continua fiel à direcção da Al Qaeda. A oposição que combate contra Bashar el Asad e que o Ocidente apoia sofre uma importante mutação ao longo de 2012. Nesses meses o jihadismo tira o protagonismo ao Exército Livre da Síria (oposição) e põe entre os seus objectivos os cristãos.

Bom exemplo é o que sucede na batalha encarniçada que se realiza pelo controlo da cidade de Homs (no centro do país). Das 800 famílias que viviam nas suas ruas no início do ano não resta nem uma. Todas as igrejas são arrasadas. Em Damasco (sul) e em Alepo (norte) a história é similar ainda que os rebeldes não conseguem eliminar de todo os seguidores da cruz. Até que Bashar el Asad não retoma quase por completo o controlo da capital (finais de 2014) os sequestros de baptizados para obter fundos e os ataques com carro bomba são frequentes. Em Alepo a situação não se estabilizado. 65 por cento dos seus cristãos já se foram.

O sucedido em Malula, ao norte de Damasco, é também paradigmático para compreender a mudança na Síria. Neste povoado, de maioria cristã, todavia falava-se a língua de Jesus, o arameu. Em Setembro de 2013 sofre o ataque conjunto do EI e da Al Nusra. Os seus 5.000 habitantes abandonam os seus lares e todas as igrejas são profanadas.

Medidas ineficazes
Perante este quadro de limpeza étnica, os bombardeios primeiro dos Estados Unidos e mais tarde da coligação internacional constituem uma resposta insuficiente. Os Estados Unidos atacam agora a oposição síria que no seu momento apoiou. O Estado Islâmico que reproduz e aumenta a guerra de sempre no Oriente Próximo (sunitas contra xiitas, xiitas contra sunitas) exige uma resposta mais contundente. A guerra contra o EI não se pode ganhar se não se secam as suas fontes de financiamento. Enquanto não se feche a torneira das receitas que obtém através da venda de petróleo e as doações privadas que lhe chegam do Qatar e Arábia Saudita esta forma de wahabismo violento não poderá ser detida.

As frentes para responder à eliminação sistemática de cristãos do Iraque e Síria são várias. À medida que o Exército sírio e o Exército iraquiano recuperem cidades e regiões tomadas pelo jihadismo é necessário que os cristãos voltem às suas casas. Não se pode dar por bom o status quo criado pela violência. De igual modo é necessário que os dois países desenvolvam um projecto político estável. E em terceiro lugar é necessário que o islão verdadeiramente religioso, como disse o papa Francisco, seja mais contundente na condenação do EI. Os pronunciamentos da mesquita de Al Azhar (referência dos sunitas) e a carta de 120 ulemas que criticam as suas pretensões não são suficientes. O mundo não pode aceitar essa limpeza étnica.

Artigo publicado em La Razón.

[Clica aqui para ler a entrevista de ReL a Fernando de Haro sobre o seu livro Cristãos e leões, que reflecte a situação dos cristãos perseguidos em todo o mundo.]



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