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domingo, 31 de maio de 2015

Propriedade e uso dos bens da terra

1. Destinação universal dos bens da terra
Há anos, numa comunidade de base do nordeste do Brasil, fui interpelado por vários participantes, pedindo para que a hierarquia da Igreja assumisse o lado dos sem terra e enfrentasse os grandes latifundiários que registaram terrenos imensos, expulsando do seu território os índios e negando a possibilidade aos pobres de construírem as suas casas nessa área. Este episódio fez-me pensar sobre um dos princípios da doutrina social da Igreja, a que até então dava pouca importância, ou seja, a destinação universal dos bens da terra e a sua relação com a propriedade privada, a liberdade e o trabalho.
 
Na verdade, a visão bíblica e cristã do ser humano e da sua relação com a terra diz-nos que Deus confiou o mundo aos cuidados do homem, para dele tirar o seu sustento e torná-lo belo e habitável (Gen. 1, 26 ss). Portanto trata-se de um uso transformador dos bens da terra e não duma posse absoluta como proprietário e senhor. A propriedade não é um princípio absoluto, mas está em função do seu uso em ordem à alimentação e ao exercício da liberdade e da expressão da dignidade da pessoa, tendo em conta o bem comum e a solidariedade com os mais frágeis. Esse cuidado e transformação da terra pelo trabalho cria uma relação da pessoa com os bens daí resultantes, conferindo-lhe uma certa propriedade, mais no sentido do uso e administração desses bens que no sentido de posse individual e absoluta. Esta relação não é nem a dos sistemas dos Estados de ditadura socialista nem a do capitalismo selvagem. O papel da autoridade do Estado é no sentido da regulação equitativa e justa dos bens da criação em ordem ao bem comum de todos, evitando que alguns se apropriem deles de modo individualista, impedindo que outros retirem também deles o seu sustento e bem estar através do trabalho.
 
Encontrar o equilíbrio entre a posse egoísta e um socialismo coletivista nem sempre é fácil. Nisto se manifesta a inteligência humana e o sentido do bem comum. A propriedade não pode ser arbitrária. Tem uma função social, garantindo trabalho e alimento não apenas para os seus proprietários, mas contribuindo para o bem da sociedade, direta ou indiretamente. Poderíamos lembrar neste sentido a parábola evangélica dos talentos (Mt 25, 14 ss), em que o Senhor elogia aqueles que os souberam fazer render e incrimina e apelida de servo mau e preguiçoso aquele que enterrou o que recebeu, não o fazendo render. Somos, pois, administradores dos bens da criação e não senhores absolutos.
 
2. Desprendimento e Pobreza dos consagrados
Estamos a viver um ano dedicado à vida consagrada, ou seja daqueles e daquelas que renunciaram livremente à posse dos bens, à constituição de família biológica e à autonomia da sua vontade nas escolhas dos seus projetos de vida, professando os votos de pobreza, castidade e obediência, imitando assim de perto o estilo de vida de Jesus, obediente até à morte e morte de cruz. Esta vocação e este testemunho na vida da Igreja é essencial, pois aponta para a caducidade dos bens materiais e para o único absoluto, que é Deus.
 
Já na primeira comunidade cristã de Jerusalém havia o testemunho de quem se desprendia dos bens em favor dos pobres, de modo que entre eles ninguém passava necessidade (Act. 2, 44 ss). Mas foi sobretudo a partir do século IV que se formaram as comunidades monásticas, em que tudo era comum, não apenas os bens materiais, mas também os espirituais. O lema de S. Bento, pai do monaquismo ocidental, permanece um modelo e um desafio para toda a vida consagrada: ora et labora, reza e trabalha. Foram estes monges que evangelizaram a Europa e construíram as raízes de uma Europa unida não pela força dos exércitos e das armas, mas pela fé e fraternidade, baseadas na oração e no trabalho comunitários.
 
O modo radical de viver a fé e seguir a Cristo expresso pelos consagrados é um testemunho importante num mundo dominado pelo poder financeiro da economia liberal, em que a dignidade da pessoa humana e a sua dimensão espiritual são secundarizadas. Esta economia mata, diz o Papa Francisco. Mata a dignidade da pessoa, os valores da liberdade, da igualdade, da fraternidade e marginaliza os pobres, os débeis, os frágeis. Este uso egoísta da propriedade e dos bens da criação não é evangélico nem cristão. A comunidade europeia não terá futuro, se não se abrir a estes valores do espírito, orientando os seus recursos e a sua economia, tendo em conta os valores que os consagrados vivem de modo livre e radical. Mas o Ano da Vida Consagrada deve lembrar aos próprios consagrados o primitivo fervor e a alegria da sua profissão dos conselhos evangélicos, pois também eles correm o risco de se deixar contaminar pelo materialismo reinante.
 
Aproxima-se a solenidade do Pentecostes e invocamos para a nossa Igreja o dom do Espírito Santo, para que nos torne testemunhas destemidas e alegres do amor de Jesus Cristo, que a todos quer salvar, tornando-nos mais fraternos e amigos de ajudar, sobretudo aqueles que a sociedade marginaliza, pois Deus não faz acepção de pessoas, mas olha com preferência para os mais pobres.
 
† António Vitalino, bispo de Beja

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