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terça-feira, 30 de agosto de 2016

As duas torres

Domingo XXIII do Tempo Comum

Três vezes ouviremos da boca de Jesus, no evangelho do próximo domingo, esta expressão: não pode ser meu discípulo. Não pode ser meu discípulo quem não renunciar a tudo o que possui, quem não tomar a sua cruz para me seguir, quem não Me amar mais que ao pai, à mãe, à esposa, aos filhos, aos irmãos, às irmãs e até à própria vida. Não são propriamente fáceis de ouvir estas palavras que, como uma barra atravessada diante de nós, nos impedem de prosseguir como discípulos de Jesus se não abandonamos os esquemas do viver pagão. A vida cristã não é uma caldeirada ou uma salada religiosa como foi a religião dos samaritanos e é hoje a de muitas pessoas que se dizem católicas e usam os rituais do cristianismo mas que, de facto, não foram evangelizadas, e vivem como pagãs que são.
 
Ninguém pode ser cristão sem se converter seriamente a Jesus Cristo. Não é a mesma coisa viver com Ele ou sem Ele. Cristo, o Filho de Deus, veio ao mundo, não para nos oferecer uma almofada espiritual ou psicológica que qualquer religião pode oferecer a melhor preço para suportarmos esta vida de escravos, mas para nos dar uma justiça nova, uma vida nova, a Sua própria vida, a Vida Eterna, a gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Mais tarde ou mais cedo, na nossa caminhada espiritual, chega o momento em que temos de nos decidir por Ele ou contra Ele. Não pode ser discípulo de Jesus quem vive segundo a carne apoiando-se nos bens materiais e nos afetos e alienando-se da sua realidade concreta, às vezes também por meio da religião.
 
Quem, mesmo sem entender todo o seu alcance, escuta e leva a sério estas palavras duras do Senhor, fica surpreendido com a sua luz: elas lembram-nos que Jesus é Deus e que amar a Deus sobre todas as coisas é o primeiro mandamento da Lei; denunciam a inconsistência, a falsidade e a insuficiência dos nossos relacionamentos sem Deus, e mostram-nos que essa barra que nos fez parar é a alavanca que o Senhor nos dá para podermos sair do atoleiro das nossas relações erradas com a natureza e com os bens materiais, com os outros e com Deus, e nos tornarmos, no seguimento de Cristo e por sua mediação, herdeiros de uma justiça nova alicerçada na graça e na misericórdia. Só amando a Deus acima de tudo, podemos, de verdade, amar o próximo.
 
Essa justiça nova resplandece na Cruz do Senhor. Ali vemos realizada plenamente a Lei de Deus, ali o homem Jesus obedeceu inteiramente ao Pai amando-O com todo o seu coração, com toda a sua alma e com todas as suas forças e nos amou dando a sua vida por nós. Ali o Senhor, vencedor do pecado e da morte dá aos que n’Ele creem, pelo facto de acreditarem n’Ele, aquilo que a Lei promete e não pode dar: a vida eterna! Ele diz-nos estas palavras incómodas para nos pôr na verdade. É apenas por mediação sua que podemos amar a Deus e aceitar a sua santa vontade na cruz de cada dia, é por mediação sua, é n’Ele, que podemos amar verdadeiramente o pai e a mãe, a esposa, os filhos, os irmãos e as irmãs aceitando-os assim como são, e também os inimigos. Só quem encontrou em Jesus o tesouro da sua vida se torna verdadeiramente livre em relação aos bens materiais e aos afetos, porque aprende a viver descentrado de si mesmo e apoiado na providência amorosa do Pai.
 
Grandes multidões acompanhavam Jesus quando proferiu estas palavras chocantes. Ele não quis e não quer que O sigamos enganados, procurando enquadrá-l’O nos nossos esquemas egoístas e mesquinhos. Não é Ele, o Filho de Deus, que deve converter-Se a nós, mas nós a Ele. E, por isso, fala-nos de construir uma torre e de um combate a travar, e convida-nos hoje a que nos sentemos e ponderemos, diante d’Ele, se queremos realmente edificar e se temos financiamento para concluir, e se dispomos de forças e aliados para vencer.
 
Queres conhecer esta torre? Por fora é muito discreta e passa despercebida, mas por dentro é bem ordenada e muito bela. Tem Deus por arquiteto e construtor e nós somos os seus colaboradores. O rés-do-chão é o nosso relacionamento com a terra, com as coisas, e chama-se pobreza. Os diversos andares são o nosso relacionamento com as pessoas e chamam-se caridade e castidade. O piso superior e a cobertura da torre chamam-se obediência e são a nossa relação com Deus, relação que abriga e configura todas as outras. Este piso superior é o mais importante porque nele está a sala dos banquetes e um terraço preparado para receber uma nave espacial que nos traz uma amostra do céu e um óleo maravilhoso para lubrificar as articulações dos nossos relacionamentos e curar as nossas feridas. Como Deus nunca se repete, embora o projeto seja sempre o mesmo, cada construção é única e cheia de surpresas, como podemos ver na Virgem Maria e nos Santos e em muitos outros exemplares já concluídos. Se já percebeste que, sozinho e com os teus recursos, nada poderás edificar com solidez e sabedoria, oferece-te ao Senhor para que venha Ele edificar contigo, no tempo da tua vida terrena, essa torre pascal que a morte não poderá destruir.
 
E o financiamento? O dinheiro do Senhor é o Espírito Santo. No próximo domingo, se depois de ouvires o evangelho não ficares escandalizado e não te escapares discretamente da assembleia, verás como, na celebração da Eucaristia, Jesus e o Pai O dão generosamente àqueles que Lho pedem. 

Quem não dá ouvidos a Cristo e ama o dinheiro ou as pessoas ou a si próprio mais do que a Deus, está edificando a sua versão da torre da confusão, da torre de Babel. Dela aparecem constantemente novos e surpreendentes projetos, também em chave religiosa, mas todos têm isto em comum: são pensados e desenhados para atingir o céu, mas nunca lá chegam; são feitos à medida das ambições desmedidas do ser humano e parecem muito sólidos, mas não têm alicerces; e usam sempre e apenas materiais formatados à medida da mão do homem, tijolos rigorosamente iguais, pois toda a diferença é proibida e castigada por encarecer a construção, e ali é o dinheiro que tudo decide. O resto, já o sabeis. Basta abrir os olhos e ver o entusiasmo e a ilusão com que sempre se começa a construir e a desilusão e a confusão com que, a breve trecho, tudo se desmorona. E, mesmo assim, são tão poucos os que abrem os olhos e se sentam a pensar se não haverá mesmo alternativa a essa fábrica de desilusões…
 
Tu sabes que há.
 
+ J. Marcos


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