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sábado, 14 de janeiro de 2017

A eutanásia não faz sentido

Felizmente, muita gente tem escrito sobre a Eutanásia. E felizmente são muitos os que se importam com este tema e nos dão bons motivos para crer que a vida ainda vale a pena ser vivida. Não só a nossa, mas a de todos.

Depois vêm os conceitos: liberdade, autonomia, dignidade, direito, dever... são muitas, imensas, as palavras e as ideias. Umas mais acertadas do que outras. Há muito a debater e ainda bem que se debate. Gosto destes debates, sempre gostei. Sempre gostei de me levantar na sala e de falar e de defender com unhas e dentes aquilo em que acreditava, fosse o que fosse.

Desta vez, porém, não quero levantar-me nem defender nada. Como disse no início, muita gente já o fez e muito bem. Não faltam textos fantásticos que nos podem ajudar a ter ideias certas e claras. Mas não é de ideias que quero falar. Desta vez quero apenas contar uma história.

Pouco depois de fazer 13 anos, a minha avó foi atropelada. Lembro-me vagamente de chegar à escola onde trabalha a minha mãe, numa tarde de Primavera, e de me dizerem que a minha mãe estava no hospital com a minha avó.

Nessa manhã, como de costume, a minha avó tinha ido ao mercado. Subia a rua devagar, nos seus passos pequeninos. Não havia pressa. E como de costume atravessou a estrada na passadeira. Mas nesse dia tudo mudou. Porque ao contrário do que era costume, o carro que subia a estrada em grande velocidade, não parou a tempo. Foi um acidente, simplesmente um acidente. Mas a minha avó não voltou a acordar.

Inicialmente foi para os Cuidados Intensivos e achámos que não iria sobreviver. Ao início só entrava a minha mãe. Eu e os meus irmãos não podíamos, porque era demasiado impressionante o estado em que estava. Depois sim, pudemos vê-la. Nessa altura, tínhamos que pôr máscara e aqueles fatos azuis aos quais não estava ainda habituada. Só me habituei muito mais tarde, já na Faculdade.

Até que passou a altura mais crítica. Recuperada das lesões do corpo, nunca chegou a recuperar das lesões cerebrais. Estava em coma. Mas como não precisava de medidas extraordinárias, passou para um quarto do internamento. Aí lavavam-na, davam-lhe de comer e mudavam-na de posição com frequência para não ganhar feridas. E aí podíamos visitá-la sempre que queríamos. Não falava e não sabemos se nos ouvia. Abria os olhos de vez em quando, às vezes parecia que olhava para nós, mas provavelmente não estava a olhar. E apertava a mão esquerda. Apertava com força e parecia que não queria que a largássemos.

Foi então que tudo começou. Como era a minha relação com a minha avó antes do acidente? Como disse, tinha 13 anos. Estava em plena adolescência e não foram anos nada fáceis. Quem não acreditar pode perguntar à minha mãe. A minha avó costumava ficar a dormir no meu quarto quando ia lá a casa aos fins-de-semana, e obviamente que eu não achava muita piada ao assunto. Lembro-me de lhe responder torto quando não me deixava fazer o que queria e lembro-me de mil outras coisas que na altura não valorizava... 


O Hospital onde estava a minha avó ficava muito perto do Colégio onde eu estudava na altura. Estava no 8º ano e a partir de certa altura comecei a visitá-la todas as semanas. Acho que ia às terças e quintas, no fim das aulas. Passava lá uns minutos, uma hora. Contava à minha avó coisas do meu dia, preocupações, alegrias e tristezas. Rezava às vezes, embora não rezasse muito nessa altura. Lembro-me de levar música e de lhe pôr os phones nos ouvidos. Agora rio-me quando penso nisso, a minha avó com phones! E gostava de lhe dar a mão e de deixar que apertasse a minha.

Passaram três anos. A última visita foi no dia 19 de maio de 2006, véspera dos meus anos. Era uma sexta-feira, não era o dia de visita habitual. Mas no dia seguinte ia estar fora e queria ir celebrar o meu aniversário com a minha avó. Acho que se tinha tornado a minha grande confidente. Como não ir lá? Lembro-me do médico ou de um enfermeiro que entrou no quarto, ter dito que estava com uma pequena infeção respiratória, nada de especial.

Fui a última pessoa a visitá-la. No dia seguinte, a minha avó morreu. Nesse dia eu fazia 16 anos. Nunca me vou esquecer. Estava triste por ter perdido a minha avó, mas sabia que não a ia ter para sempre. De certa forma, acho que foi um presente. Sempre achei isto. Foi um presente que Deus a tivesse levado, finalmente. Mas acima de tudo, foi um presente tê-la comigo enquanto viveu.

Podem dizer-me que sou uma egoísta, porque se reconheço que foi um presente que Deus a tenha levado, ou sem eufemismos, que tenha morrido, porque não adiantar esse tempo? Porque não encurtar a provação? Porque não permitir que fosse antes, mais cedo, embora?

Não sei o que tinha acontecido se a minha avó tivesse morrido no dia do acidente. Mas sei o que aconteceu durante estes anos. Sei como me ajudou, como foram importantes para mim aqueles minutos, aquela mão.

Acho que todas as pessoas são importantes ou podem ser importantes para alguém. E se a minha avó não tivesse estado cá nesses anos, provavelmente ia ter muito mais trabalho em descobrir isto. E nunca iria valorizar o que não valorizava na altura. E ia-me passar ao lado uma das descobertas mais bonitas da vida.

Não sabemos! Não sabemos o que pode acontecer. Não sabemos que influência pode ter uma pessoa, por mais doente, demente ou inconsciente que esteja. E se não sabemos, porquê correr o risco de ficar a perder? Porquê arriscar perder momentos únicos?

Sugiro que visitem os familiares doentes. Os doentes sozinhos nas camas de um hospital, aqueles que ninguém visita. Sugiro que conversem, que oiçam, que cantem. Sugiro que todos nós o façamos. E a eutanásia deixa de fazer sentido, porque não vamos deixar que nos levem o nosso maior tesouro.
 
Mariana Capela



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