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sábado, 13 de maio de 2017

Ressentimento

Imagino que todos tenham algo que os incomode frontalmente, uma espécie de calcanhar de Aquiles emocional. A mim incomodam manifestações infantis geradas por marmanjos. Normalmente são filhas de carências, de inseguranças, de baixa autoestima. Até nos animais se percebe isto. Cachorros carentes são muito chatos. O que preferimos? Cachorros serenos, autoconfiantes. No trato com as pessoas, data vênia a comparação quiçá não muito feliz, não é muito diferente. Claro está que a virtude maior, a caridade, deve se impor, de tal forma que tratemos a todos e a cada um com respeito. Como certamente fazem conosco. Não fosse a caridade, viver em família ou em comunidade seria literalmente inviável.

Criar filhos é uma arte, que exige atributos nem sempre abundantes em nosso peito. Criar filhos é um desafio, que nunca vencemos integralmente porque é preciso dar a eles o direito e a chance de não reproduzirem os nossos erros. Pobres dos filhos cujos pais imaginam ter moldado como cópia, porque manietados perderam a oportunidade de serem de fato únicos. E melhores. Mas há um ponto a partir do qual é preciso soltar a mão, deixar que os filhos errem ou acertem sozinhos. É um momento sublime de transição, quando os pais passam a ter direito, digamos assim, de morrer. Ou existe algo mais angustiante para um pai que perceber que um filho adulto ainda não tem maturidade para se virar sem grandes sofrimentos quando ele, pai, faltar?

Na linha do aborrecido, há outro vacilo sentimental de dissipar o estoque de paciência de qualquer um: a dúvida de um filho a respeito do amor de seus pais, ou de um deles. Sei das consequências psíquicas que o desamor na infância pode ocasionar, mas como jamais duvidei do amor de meus pais, me é difícil entender o contrário. Posso parecer bruto, mas penso que há um certo ponto em nossas vidas a partir do qual pouco importa se fomos ou não amados pelos pais. Que ponto é este? Aquele em que nos percebemos desde sempre amados por Deus Pai.

Estas são considerações óbvias, que sequer mereceriam muitas linhas, não fosse esta transição para a vida adulta algo nem tão simples assim. Nem me refiro aos tempos de hoje, em que filhos marmanjos demoram cada vez mais a deixar a casa paterna e dela dependem economicamente. O homem sempre teve diante de si esta dúvida ontológica. Se Deus criou tudo e, digamos assim, sumiu – o que vale dizer que não se manifesta, senão aos eleitos ou a uns e outros que relatam esta experiência,- é como se Ele nos houvesse abandonado, como se nos houvesse deixado ao relento num universo enlouquecido e amedrontador. Afinal, onde está Deus diante das injustiças, da fome, das guerras, da miséria abjeta que circunda os palácios dos homens, onde está Deus que não alija do poder os governantes psicopatas que nos usam, que nos roubam? Este discurso que se pode imaginar nos lábios humanos não é político, é sentimental. E aqui toca-se no ponto extremo: o contrário do amor não é o ódio. É a indiferença.

Para o homem imaturo, portanto, que não compreende o amor e a graça, Deus é indiferente quanto à saga humana porque, se assim não fosse, interviria com muita frequência e volta e meia o embalaria em seu regaço celeste. Como um pai que seca as lágrimas de seu filho ou tira satisfação do que o filho de outro pai fez ao seu. Seria até simples, não fosse este Pai o mesmo de todos. Mas o homem não consegue enxergar isto com facilidade, e por isto uns são Caim e outros são Abel. Aliás, vez por outra, diante das injustiças prodigalizadas no mundo, penso que a história humana poderia ser resumida em uma só frase: Caim matou Abel.

Esta história da humanidade que indaga seu destino, impreca contra o fardo que carrega e não vê sentido na vida - porque a vê mesmo como um desagradável e tolo desatino, uma paixão inútil, um longo e penoso martírio,- acaba num sentimento de profundo ressentimento dos marmanjos que se acham abandonados. Foi em cima disto que Nietzsche, para citar o pensador da moda, bateu as estacas de sua construção filosófica. E as cravou no peito do homem jovem, aquele que normalmente devia ser todo feito de esperança. Nietzsche não inventou o ressentimento, mas colocou toda a sua inteligência e melancolia a seu serviço.

O que se pode fazer contra tudo isto? Penso que muito, a começar por não abdicar de nossas responsabilidades. A primeira coisa a fazer é ajudar os jovens a amadurecem, sejam nossos filhos ou não. Depois mostrar a eles que devemos desconfiar dos que perderam a razão ainda jovens - como Nietzsche, em Weimar, e outros depressivos tantos,- e terminaram seus dias como loucos. Encerrados em si mesmos, soberbos e corroídos pelo ressentimento.

J. B. Teixeira



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