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domingo, 15 de outubro de 2017

Três filosofias

Nossa filha tenta contabilizar as aves que migram no fim de tarde. São muitas e seus bandos se sucedem no horizonte. Ela começa a contar e antes que chegue no vinte mais de uma centena desapareceu do nosso campo de visão. De onde vêm? Para onde vão? Pouco importa, ainda não pagam tributos e sobrevivem pela providência divina, como de resto cada um de nós, mesmo os ateus, agnósticos e assemelhados.

A anatomia das aves revelava corpo esguio e asas finas, sugerindo que fossem marrequinhas. A suspeita se confirma quando escuto seu mantra de voo. A noite já se aproxima e os bandos parecem confiantes em seus líderes. Comportamento bem diferente do que se vê na sociedade, que hoje não acredita em seus próceres nem mesmo sob a luz de sol a pino.

Fico a lembrar de um episódio com aves que se passou há alguns anos. Saíra com a bicicleta pela orla de São Lourenço, sem a máquina fotográfica. Era igualmente um fim de tarde e pelo caminho encontrei bandos de aves nas árvores e nas fachadas. Nos fios elétricos, como pregadores num varal, eram tantas que mais pareciam contas de um colar. Era um espetáculo único. Lamentei não poder fotografar, mas pensei que poderia fazê-lo na manhã seguinte. Minha tolice teve um preço justo, porquanto aquelas aves de arribação não deixaram mais que uma doce lembrança. Alguns momentos são únicos e as fotos, que não bati, ficaram na retina.

Olho para a filha e degusto seu contentamento. Vive um tempo em que desconhece as contas bancárias e as dores adultas de cabeça. Tempo em que deve começar a aprender rezar, a dedilhar as contas de um rosário, para que mais tarde olhe as aves e agradeça a Quem as criou.

Tomo a bicicleta. É fim de tarde. Paro num trapiche e me apronto para fotografar um barco que oscila com suavidade na laguna. Tiro algumas fotos e, quando descubro o melhor ângulo, acaba a bateria e fico com a imagem novamente na retina. Que a retém e a envia para o quarto escuro da alma para que seja revelada. Enquanto giro em torno dos calcanhares, um pouco inseguro quanto ao piso apodrecido do trapiche, o dono do barco me dirige a palavra. Diz que a pesca anda mal, que a laguna não salgará uma vez mais e que pescar mal paga o custo do combustível. Dá de ombros, como quem não perde o sono por isto. E diz que tem a consolação da fé. Seu aspecto castigado parece de fato revelar o pouco caso que faz do supérfluo.

Me despeço, desejando tempos melhores, e fico a lembrar do livro cujas páginas finais liquidara horas antes. Chama-se “Três filosofias de vida”, de Peter Kreeft, e explora três dos livros sapienciais da Bíblia: o Eclesiastes, que identifica com o Inferno, O Livro de Jó, que relaciona ao Purgatório e o Cântico dos Cânticos, que liga ao Paraíso. Kreeft explora detalhes interessantes do Eclesiastes e o seu “tudo é vaidade”. Seu autor, tenha sido Salomão em pessoa ou outro com um corpo de ideias similar, coloca a busca da sabedoria, a busca do prazer, a busca do poder, o 

altruísmo e a religião convencional no terreno das coisas que resultam no vazio, em vanitas, em vaidade. Aquele pescador com quem acabara de falar, que se expõe há quase meio século ao humor das águas, ora turvas, ora plácidas, ora límpidas, ora temerárias, sabe que de fato “não há nada de novo sob o sol” e portanto parece ter deixado o Eclesiastes para trás.

Os que conhecem de perto a decepção de quem lança a rede, cheia de esperança, e a resgata vazia - cena cada vez mais comum na Laguna dos Patos, devastada pela exploração ora burra, ora criminosa,- sabem que aquele pescador tem na profissão o próprio Purgatório, que o enrija e desgasta. Que o castiga enquanto o prepara para os encantos do destino último que escolheu. É um pequeno Jó, que não entende o porquê de tanta luta, se indigna, mas não perde a fé. Será o povo um exército de Jós, purgando culpas, tanto as que tem quanto outras, que sequer imagina, comandado por homens que habitam a terra da vaidade e reescrevem o Eclesiastes?

Retorno à casa e a filha mostra uma surpresa alegre. Lembro uma vez mais das três filosofias de vida quando um novo bando cruza os céus sobre nossas cabeças e, antes que ela possa contá-lo, se esconde além dos limites da nossa visão. Não há fotos e nem são necessárias. Há coisas únicas, que não estão nem no Eclesiastes, nem em Jó. São mesmo a antessala do Paraíso.

J. B. Teixeira






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