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quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Nova data

Quando meus pais falavam de Natal infalivelmente referiam-se a um cidadão que percorria as ruas batendo sino, por vezes arrastando correntes, assombrando a imaginação das crianças que aguardavam seus presentes na noite da véspera. Atendia pelo nome de Christkind. Não me recordo se entrava nas casas, se fazia as crianças rezarem, se as interrogava. Seja como for, Christkind era uma versão substituta de São Nicolau, nascido na Ásia Menor no século III, padroeiro de Rússia e Grécia, tido como homem generoso com os pobres e crianças carentes.

Da minha infância lembro que esta figura – adotada pela cultura religiosa europeia e no caso do Vale do Caí, particularmente, pela cultura germânica,- transmudara para um sujeito que vestia máscaras grotescas, calçava botas e ostentava calças e túnica vermelhas. Penso que em Montenegro nunca vi papai noel com barba e rosto aparente. Era sempre um mascarado, algo risível para todos aqueles que ainda hoje podem rever fotos antigas em que uma destas figuras aparece entre os familiares e amigos. Como era possível que tal circo mambembe fosse armado? E tão acalentado durante um ano inteiro? Minhas recordações registram sempre um olhar assustado de crianças que mais não desejavam que aquele estranho - de olhar até sinistro através de dois buracos,- desse no pé. A máscara era necessária para preservar a identidade do travestido, quase sempre um vizinho, empregado ou mesmo o pai ou um tio dos pequenos.

Já adolescente me recordo de papais noéis que saiam às ruas com varas, ameaçando todos com os quais cruzavam. Era até divertido. Vi de tudo. Certa feita uma cachorrada solta perseguiu o tal, que andava na garupa de uma moto. Nem o melhor dos cineastas de humor faria melhor. Para mim não deixava de ser uma revanche dos que deixavam de acreditar na tola história de que um camarada mal arranjado sai por aí, no final do ano, a prodigalizar presentes.

Na verdade aquelas figuras de quarenta anos atrás já significavam uma transição. Christkind, que já não era mais chamado de Christkind, deixara a corrente de lado e no máximo portava uma vara, que sequer era de marmelo. A esta altura não posso deixar de registrar algo que beira o patético. Algumas lojas do comércio local, instaladas no centro da cidade, contratavam papais noéis para ficarem diante de suas portas. Exemplos brutais de propaganda de efeito duvidoso, os pobrezinhos contratados vestiam trajes horríveis. Eram andrajos, a desmoralizar os pais que insistiam em manter a crença dos filhos no tal bom velhinho. Alguns destes noéis eram figuras carimbadas, conhecidos inúteis ou mesmo cachaceiros. Céus, era demais!

Muitas crianças aceleravam o processo de salvação da falácia a partir daquela bizarrice. Como é que um magricela, com roupas esdrúxulas, pode ter dinheiro para tantas doações? Como era possível tudo aquilo? Uma sociedade inteira a fantasiar tolamente? Mas este constrangimento – fadado a esboroar-se na história,- vivido por marmanjões a contar uma historinha mentirosa para seus filhos sofreria uma guinada. Que salvaria os noéis chinelões e os traria renovados para os holofotes da modernidade.

Nestas transformações todas algo evidentemente se quebrava. A começar pela figura do Christkind punidor, um azorrague dos tribunais explícitos da consciência, um torturador de crianças, sem sequer a sombra da santidade de Nicolau. A prática de trocar presentes já corria distante dos Reis Magos, já se perdia a ligação com a noite sagrada de Belém e os Natais já se apressavam para serem natais. Nada mais distante do espírito de pobreza em que Nosso Senhor viria ao mundo, nada mais longínquo da espiritualidade de Maria, aquela que não se assustou quando Gabriel lhe falou do que ocorreria em seu ventre e na sua vida.

Então, de forma magistralmente criativa, Christkind, o caricato seguidor de São Nicolau, torna-se um gordo próspero, casado, diretor de um empreendimento tocado por gnomos, dono de um rebanho de renas voadoras e que habita na Lapônia. Que vôo! Um salto patrocinado sabe-se lá por quem e coadjuvado por todos os pais que suspiram quando percebem que seus filhos ainda acreditam em papai noel, porque bem no fundo a fantasia é dos adultos e não das crianças. E assim, seja rico ou seja pobre, o velhinho sempre vem. Mas vem sem a verdadeira caridade, a virtude central que noel não tem. Vem sem a Verdade, atributo daquele que salva. Mas há solução para isto e é simples. Basta criar uma data para noel. Basta descolá-lo do Natal, no qual não passa de um oportunista. Uma data só de noel. Quem sabe primeiro de abril?

J. B. Teixeira



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