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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A Voz das Ruas

Amigo aqui da Redação, cuja visita sempre torna nosso ambiente mais culto e ainda mais instigante, me perguntou se conhecia as razões que levaram o Homo Sapiens a vencer o Homo Erectus. Deus meu! Acho que faltei nestas aulas de antropologia. Não, não sabia. Segundo ele a explicação, proposta por arqueólogos, passa por uma flauta rudimentar. Que seria usada pelos Sapiens como um meio tão primitivo quanto efetivo de comunicação. Fico a imaginar o som deste instrumento como um silvo de apito, cuja intensidade e frequência a tornariam meio muito eficiente de localização, informação estratégica e comando de ataque. Será que foi assim? Pelo sim, pelo não, me contento com a obviedade das denominações: um de nossos ancestrais, o Erectus, colocara-se sobre os dois pés, enquanto o outro, o Sapiens, mantivera esta atitude mas tinha capacitações mentais superiores. Não podia dar em outra coisa, com ou sem flauta.

Ora, reza a lenda dos irmãos Grim que Hamelin comandou um exército de ratos pelo som de sua flauta, que se bem utilizada produz música elevada, evocativa. Ao transportar gansos em meu carro tive a oportunidade de perceber que a música os aquietava no percurso. Estou falando de música, naturalmente, não de barulho. A história da flauta, em si, pode não passar de uma ousadia de arqueólogos, gente, digamos assim, também bastante imaginativa. O que há de subjacente nisto, entretanto, é o aspecto da organização, do comando. Os Sapiens patrolaram os Erectus pelo espírito associativo, pela coesão grupal. Era o início dos exércitos e da política.

Não tenho especial interesse por política e a vejo como um mal necessário, um ajustamento que nos livra da barbárie e limita um pouco os estragos dos tantos psicopatas que integram governos no mundo e influenciam seu destino. A matéria política, portanto, não está na cesta de meus assuntos prediletos, e o faz ainda menos quanto mais amiudada, rasteira e hipócrita. Como, porém,a perplexidade da sociedade nos dias que correm não diminui,acabo refletindo a respeito, goste ou não. Nossos políticos, em geral, são ruins? Ora, não percamos tempo com obviedades.

Isto posto, considero uma injustiça colocar apenas os políticos no banco dos réus e me pergunto até onde existe condição moral para este julgamento pela sociedade. Explico melhor. Criamos um programa chamado A Voz das Ruas. Um equipamento móvel, com uma bancada e uma câmera, destinava-se à gravação de depoimentos espontâneos em praças, escolas e outros espaços públicos. Qualquer pessoa dispunha de dois minutos para dizer o que bem entendesse. Imaginávamos que seria um sucesso, afinal os depoimentos seriam apresentados por várias mídias de nosso grupo de comunicação. Para nossa surpresa, tal não se deu. Quais as causas maiores? Não tenho a resposta científica, mas penso que seja triplice: falta de clareza acerca do que reivindicar, timidez pelo despreparo verbal e medo. As duas primeiras causas são óbvias. A terceira, porém, tornou-se evidente numa das gravações, na praça central da cidade. Uma senhora relutava em falar. O repórter, delicadamente, insistiu. Não posso, moço!, respondeu. Por que não podia? Ela pedira não-sei-o-quê para o prefeito da época e temia que tocar aquele trombone acabasse com suas chances de conquistar a benesse.

Podemos chamar este medo de covardia oportunista? Ou seria apenas hipocrisia? Seja como for, quem pede favores políticos perde inteiramente o poder de criticar o padrinho. Morre no ato a autoridade de quem pretendia mudar o mundo e apenas reproduz seus defeitos. Esta historieta serve para ilustrar o quão difícil é chegar ao fio da meada. O que mudar e por onde começar? Nossos dramas vão muito além de má gestão e corrupção. Estão nas nossas entranhas.

Como se sabe, a fala é uma das funções mais elevadas e diferencia o homem no reino animal. Enquanto os outros grunhem, piam, latem, miam, grasnam, o homem fala. Quando uma sociedade se expressa mal, quando se recusa a falar o que deveria, cai certamente um degrau na escala possível. Torna-se, digamos assim, menos Sapiens. Quando olho para nosso atraso, nossas mazelas, nossa atávica tendência de copiar, nossa trágica vocação para a subserviência e consolada disposição de manter o país em situação periférica, sou tentado a apelar para a figura inicial. Fornecedores de matérias primas para o mundo e de alimentos, como soja e carne, exportamos o que tem pouco valor. Para importar muita coisa que tem elevado valor agregado. Será que temos uma vocação psicossocial de Homo Erectus, implacavelmente batidos pelos Homo Sapiens dos países líderes? Tomara que não, mas é bom que se ache nossa flauta por aí e que não seja usada para conduzir ratos, cuja espinha dorsal não tem sequer estrutura para chegar à condição Erectus. Ratos que marcham para a morte no rio do cotidiano, onde mergulham hipnotizados pelo circo capitalista, pelo sofrimento físico e pela miséria intelectual.

J. B. Teixeira





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