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quinta-feira, 29 de março de 2018

Como se vive a quaresma em Goa

De modo geral, pode-se dizer que os goeses cristãos participam nas cerimónias quaresmais, com muito recolhimento e devoção. Em todas as paróquias têm lugar os “passos” e há igrejas que os celebram todos, como acontece na Igreja Matriz de Pangim; algumas até com imagens de tamanho natural e apropriadas para essa função; noutras, são figuras improvisadas.

Assim, na celebração do “passo” de Jesus com a cruz às costas, conquanto em cada paróquia esta cerimónia seja rodeada de certos traços peculiares, ela consta dos seguintes momentos: abertura da cortina da capela-mor, mostrando a imagem de Cristo com a cruz às costas, toda envolvida de colares de flores. Segue-se a liturgia da missa com a leitura da paixão. O acto prossegue com a procissão  que percorre várias ruas ao som dos melodiosos cânticos em concani (língua local) e da recitação do terço, com o aroma do incenso que de quando em vez é queimado ao longo do percurso. Os hindus oferecem flores e passam por baixo do andor.  Na volta para a igreja, dá-se o episódio da Verónica e o sacerdote prega o sermão.   

Em certas localidades, a procissão sobe ao monte, querendo vivenciar-se a subida de Jesus ao Calvário.

Imagem de Jesus com a cruz às costas

Os católicos do mundo inteiro têm a devoção da via-sacra nas sextas-feiras da quaresma. Os goeses cristãos também a celebram com maior ou menor solenidade e com grande contrição. Às vezes ela é realizada fora da igreja, calcorriando um caminho com cruzes de pedra que anunciam as várias estações, como acontece na paróquia de Pangim. Aqui, os fiéis iniciam este acto religioso na escadaria da Matriz e terminam no Altinho, no pátio de entrada do Paço Patriarcal. Uma das últimas orações, a jeito de remate do acto religioso é, por vezes, a jaculatória em português, “Meu Deus, Misericórdia”, repetida por três vezes Canta-se também, “Queremos Deus”.

É uma cerimónia religiosa simples, mas repassada de fervor religioso; congrega muita gente de todas as idades que participa no canto e nas orações. 

A sexta-feira santa com o descendimento da cruz, procissão e sermão da soledade é um dos momentos altos da vivência quaresmal. Há paróquias em que toda a cerimónia da sexta-feira santa decorre dentro da igreja. Após a leitura das orações da paixão e  da comunhão, segue-se a adoração da cruz. Sucede então a fase mais espectacular da cerimónia. Abre-se o pano da capela-mor e vê-se o Senhor crucificado. Pela igreja acima vão duas escadas com dois “algozes” que as colocam junto da cruz, bem como uma cama. Atam as escadas à cruz, para poderem subir. Tiram-lhe a coroa de espinhos e colocam-lhe na testa um estreito e bonito pano adamascado. Fixam-lhe os braços à cruz com panos e tiram-lhe os cravos das mãos. Depois com um pano que lhes é dado e por eles desenrolado, o corpo é suspenso para lhe tirarem os cravos dos pés. Fazem juntar os braços ao corpo e descem-no lentamente para o leito que havia seguido juntamente com as escadas. É coberto de muitas flores, coroas e manto com flores. No entretanto chega junto do leito um pálio preto com varas de prata. Nossa Senhora das Dores também se faz aparecer, mas junto do crucifixo. Começa a organizar-se a procissão que se reveste de muita solenidade e piedade, com milhares de fiéis. Quando as imagens são recolhidas, fora ou dentro da igreja o sacerdote prega o sermão.

Outras vezes,  a primeira parte da cerimónia, centrada na adoração da cruz, tem lugar dentro da igreja, mas o descendimento da cruz ocorre ao ar livre, numa colina, e depois vem-se para a igreja, em solene procissão com o esquife e a imagem da Senhora das Dores.

O descendimento da Cruz

Do que acabámos de relatar pode-se induzir que na vivência da quaresma em Goa há um certo dramatismo, mas baseado e suportado pela fé. Reina um ambiente de recolhimento e contrição. Procura-se criar um clima espiritual, propício à oração, com o recurso aos côros religiosos, aos cânticos tocantes e melodiosos normalmente em concani, à decoração da igreja em que não faltam os colares de flores predominantemente de zaiôs ou mogarins, de grande fragrância e singeleza. O ambiente rústico que envolve as igrejas e as sua imediações ainda reforçam mais este aspecto. Outra característica bastante evidente da  sensibilidade religiosa a reter é a vertente sensorial: os fiéis sentem a necessidade de tocar nas imagens e beijá-las. Têm um grande respeito pelo sagrado, aliás muito peculiar entre os orientais.

Maria de Jesus dos Mártires Lopes
Doutora em História





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