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quinta-feira, 10 de maio de 2018

A Irmã Joaninha

Todas as coisas da Criação são filhas de Deus e irmãs do Homem. Foi São Francisco de Assis que o disse e pôs em prática. Num poema lindíssimo, fala do irmão sol, da irmã lua, do irmão vento, do irmão lobo. Por eu também pensar assim, falo da irmã Joaninha que, durante três anos, viveu comigo em comunhão de cama e mesa. Partiu num domingo de Páscoa, sem que lhe pudéssemos valer. Esteve internada, com o nome de Joana Silva, sem raça definida, mas com morada certa. Esteve a soro como qualquer pessoa, veio para casa, seguiu o tratamento---imaginem o circo a dar- lhe os comprimidos, mal me via com a mão esquerda fechada oh! patas para que vos quero--- todas as estratégias falhavam,  só a força resultava: enfiados pelas goelas abaixo lá iam. Mas o mal estava espalhado e partiu discretamente, quando eu não estava em casa. Partiu sozinha, ela que tanto gostava de companhia. Mal me via ao computador saltava para cima da secretária e observava: ora olhava para mim, ora para o teclado. Percebia de informática. E também tocava piano: quando a tampa estava levantada, lá ouvíamos nós as sonatas da Joana. Nunca saltava para cima quando estava fechado; o que lhe interessava era fazer música. Também percebia de geometria descritiva. Era exímia a destapar peixe, fazê-lo saltar da bancada para o chão e encontrar o sítio certo para o entalar de modo a poder comê-lo metodicamente, começando pelo rabo. Foi assim que a encontrei com um robalo enfiado num intervalinho entre a máquina da loiça e um armário, para não falar de quando arrastou uma caixa de paté, cozinha fora, para a encaixar num ângulo do rodapé, no corredor. Digam lá se não são precisos grandes conhecimentos teóricos de geometria para realizar esta cubicagem. Além destes conhecimentos, tinha ainda as qualidades próprias da sua raça: belíssima caçadora, não lhe escapava mosca nenhuma. E se lhe escapava, loucas correrias pela casa fora, até encontrar ou desistir. Tinha de caçar, estava-lhe no sangue. Tudo lhe servia desde que lhe agradasse: bacalhau, chouriças, alheiras, se não fosse arrumado de imediato e estivesse à mão de semear, era logo objeto de saque. E pão-de-ló? Ou aletria? Era um jogo de esconde- esconde em que ela se valia da minha distração. Mal-educada? Nem mal nem bem. Era apenas um gato a quem eu deixava ser gato.

Partiu. E partiu sozinha, sem que eu estivesse presente. A casa ficou vazia. Não mais virá esperar-me à porta, quando eu entrar. Não mais irá acordar-me, para eu lhe dar patê logo que visse a primeira luz do sol. Não mais saltará para o meu colo mal me veja sentada a ler ou a ver televisão. Apenas uma gata? Não. Uma grande amiga.

Se Miguel Torga a tivesse conhecido, teria feito dela um conto, tal como fez do Nero, do Ladino e doutros perpetuados nos Bichos.

Cecília Rezende




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