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quinta-feira, 10 de maio de 2018

O poder vulgar e seus contrários

Um amigo iraniano, amante da liberdade e da mais genuína alegria, sofre porque vive em uma república islâmica autocrática. Certa feita me disse que misturar política e religião, como no Irão, é um desastre. Quando os homens se imaginam intérpretes da vontade divina, como se gerenciassem uma sucursal de Deus na Terra, o desencanto é líquido e certo. Porque o eterno não dissipa seu tempo em picuinhas e o que deveria ser sublime revela-se muito rapidamente raso, chão, puramente humano. É uma pena, porque bem comum e religião andam juntos.

Afora o desvio recente da teologia da libertação, a Igreja afastou-se da política e a democracia cristã caiu no limbo sem que a autoridade eclesial tentasse impedir a queda. Aldo Moro, amigo de Paulo VI, foi um dos maiores líderes desta corrente e seu fim trágico antecipou o saudável afastamento entre a Igreja e a política. É claro que isto não significa que os cristãos devam ser alienados ou possam eximir-se da busca do bem comum. Apenas devem perceber a fronteira entre tais áreas para que religião e política conversem, mas jamais contraiam matrimónio.

Isto também não significa que a lei mosaica seja insuficiente para inspirar a vida em família ou comandar uma sociedade. Respeitados fossem os dez mandamentos, possivelmente perderia a razão de ser, ou pelo menos não subsistiria na extensão conhecida, todo o aparato policial e mesmo o sistema judiciário. Utopia das utopias, deixaríamos no chinelo todas as fantasias do mundo físico, como usufruir o motocontínuo, viver sem trabalhar ou viajar na velocidade da luz.

Como o crivo religioso não tem jurisdição fora dos templos, e é melhor assim, precisamos de regimes e sistemas humanos, ainda que imperfeitos. Portanto temos que seguir discutindo, cá neste rincão do terceiro mundo, virtudes e defeitos de capitalismo e socialismo. Se fosse fácil, poderíamos simplesmente descartar o que é mau e dar relevo ao que é bom em cada um deles para construir um sistema mais justo, que mantivesse o mérito como mola do desenvolvimento individual. Afinal as leis buscam, ou fazem de conta que buscam, filtrar o que é mau e promover o que é bom, mas nossa crença na política e nas formalidades da democracia anda em baixa.

Quando falamos de latifúndio, naturalmente pensamos em terra, mas hoje é possível estender a palavra ao controle planetário de grandes organizações, como no setor de petróleo e na indústria automobilística, construindo latifúndios de poder à custa da drástica eliminação da concorrência. É uma grande contradição do capitalismo: a concorrência é sua bandeira mas, sempre que pode, tenta suprimi-la. Quanto ao setor público, busca garantir-se, repassando ao povo a porção de fel que deveria ser compartilhada por todos, com o exemplo dos próceres. Exemplo que não dão.

Evoco uma figura que viveu e lutou entre nós. Após a unificação da Itália, Garibaldi teve grandes desgostos. Desgastado por dívidas dos filhos e pela traição de antigos companheiros, experimentou problemas morais e materiais. Buscando cooptá-lo neste momento de fragilidade, o governo conservador, que Garibaldi combatia, propôs que o rei alcançasse a ele uma pensão vitalícia anual de cinquenta mil liras, rejeitada através de carta dirigida a um de seus filhos: “Dirás ao governo que as cem mil liras me pesarão sobre os ombros como a camisa de Nessus. Aceitando-as perderei o sono, sentirei nos pulsos o frio das algemas, as mãos quentes de sangue; e a cada vez que me chegarem notícias de depredações governamentais e de misérias públicas eu cobrirei meu rosto de vergonha”. Não se muda o poder consorciando-se com ele.

A terra seguia mal distribuída quando o governo italiano passou a incentivar a emigração de analfabetos e marginalizados. A esta altura, segundo a biógrafa Yvonne Capuano, Garibaldi dirigiu-se ao parlamento de Roma: “Quando, numa fortaleza cercada ou num navio que se atrasou, faltam víveres, os comandantes ordenam que a ração seja reduzida à metade ou a menos da metade. Na Itália dá-se o contrário: quanto mais o país se aproxima da ruína, mais se dissipam seus parcos recursos. Submeto, pois, à vossa sábia consideração e à vossa aprovação, a seguinte lei: Até que a Itália não se recupere da depressão financeira em que foi injustamente lançada, nenhuma pensão ou gratificação, nenhum benefício proporcionado pelo Estado deverá ultrapassar cinco mil liras por ano”. Disposto a sacrifícios, avesso à religião, Garibaldi parecia porém tomado de fervor quase religioso. Quando vemos - em meio à maior crise da história, com desemprego massivo e desempenho econômico pífio,- certas categorias aumentando suas vantagens, há que indagar se ainda temos entre nós homens desta grandeza.

J. B. Teixeira






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